Por Vinicius Souza – Jornalistas Livres/UFMT
Desde 2016 o jornalista Leonardo Sakamoto vem repetindo uma expressão: falta amor no mundo, mas também falta interpretação de texto. Ele diz isso cada vez que um de seus textos é tirado do contexto ou interpretado de forma errada e usado para atacá-lo, às suas ideias ou às sua posições políticas. A deturpação de falas políticas, contudo, tem sido usada cotidianamente há décadas por quem têm a obrigação ética e moral de fazer a correta interpretação e análise dos textos: os meios de comunicação em massa e seus jornalistas. Os mais recentes exemplos são as falas sobre “banho de sangue” e “guerra civil”, do presidente Nicolás Maduro, da Venezuela. Considero o problema tão sério que foi o tema do meu recente pós-doutorado na USP e do livro Quer que desenhe? Imagens, fake news e mudança no modo de pensamento.
Vamos então às aspas exatas e sua contextualização correta. Comecemos pelo discurso de Maduro. No dia 18 de julho, em comício da campanha presidencial (disponível legendado em https://www.youtube.com/watch?v=NoAwiI6_tEE) podemos ouvir claramente:
“O destino da Venezuela no Século XXI depende de nossa vitória em 28 de julho. Se não quiserem que a Venezuela caia em um banho de sangue, em uma guerra civil fratricida, PRODUTO DOS FASCISTAS, garantamos o maior êxito, a maior vitória da história eleitoral de nosso povo”.
Destaquei a expressão “produto dos fascistas” porque ela é fundamental na compreensão do discurso do mandatário. Afinal, diferente do que trouxeram todas das manchetes dos grande meios de comunicação no Brasil (G1 – Nicolás Maduro diz que pode haver ‘banho de sangue’ e ‘guerra civil’ na Venezuela caso ele não vença as eleições ; Correio Brasiliense – Maduro diz que haverá “banho de sangue” na Venezuela caso não vença eleições ; Metrópoles – Maduro sobre Venezuela, caso não ganhe as eleições: “Banho de sangue” ; Band – Maduro fala em banho de sangue em caso de derrota na Venezuela ; TV Cultura – Nicolás Maduro fala em ‘banho de sangue’ e ‘guerra civil’ caso não vença as eleições da Venezuela ) em NENHUM momento ele afirmou que seu partido ou sua ala política promoveriam o tal banho de sangue, mas sim os fascistas SE a vitória não for expressiva e incontestável.
Uma vitória apertada, de qualquer dos lados na disputa, obviamente abre brechas para contestações que podem ou não estar calcadas na legalidade. E isso não ocorre apenas na Venezuela. Basta lembrar do ataque ao Capitólio nos EUA em 6 de janeiro de 2021, quando quatro pessoas foram mortas. Ou o 8 de janeiro de 2023 no Brasil, quando o Exército ameaçou a PM com blindados se insistissem em prender os golpistas no acampamento antes da retirada de possíveis militares infiltrados ou parentes de militares. Se as forças democráticas legalistas não tivessem resistido a essas tentativas de golpe, quem garante que não estaríamos em guerra civil e com banhos de sangue promovidos pelos fascistas? Houve a colocação de uma bomba num caminhão de combustível entrando no aeroporto de Brasíllia da véspera de natal para matar centenas.
Um exemplo recente de golpe bem sucedido, ainda que por pouco tempo, apoiado pela mídia hegemônica sob uma falsa alegação de fraude nas eleições, foi o da Bolívia em 2019, que teve ampla cobertura dos Jornalistas Livres. Assim como na Venezuela atualmente, todos os grandes veículos brasileiros e ocidentais insistiam que a reeleição de Evo Morales teria uma legalidade no mínimo contestável e que a oposição nunca estivera tão forte eleitoralmente. Quando saíram resultados, mesmo com uma vantagem de mais de 10 pontos percentuais em relação ao segundo candidato, Carlos Mesa, a Organização dos Estados Americanos denunciou uma fraude inexistente e recomendou novas eleições. Quatro meses depois, um estudo independente realizado nos Estados Unidos provou que na verdade a fraude foi feita no relatório da OEA e que as eleições foram totalmente legais. A pressão estadunidense e midiática, contudo, inflamou os ânimos no país andino levando a um golpe de estado que resultou no mínimo em 37 mortes por ações dos fascistas liderados pela presidenta usurpadora Jeanine Áñez.
Isso não é um banho de sangue?
Mesmo sem golpe, a vitória de fascistas pode gerar situações de instabilidade, violência generalizada e banhos de sangue. Esse é o caso recente do Equador. Diferente de Maduro e Morales, que brigaram na justiça para poderem disputar novas eleições, o esquerdista Rafael Correa, eleito em 2006 e 2009, decidiu apoiar seu ex-vice-presidente, Lenín Moreno, nas eleições de 2017. Traído por seu sucessor que levou o governo para a direita e acossado por processos viciados como os da Farsa Jato, Correa se exilou no exterior. Ano passado, o ex-mandatário de esquerda apoiou a candidata à presidência Luisa Gonzalez contra o milionário ultra-direitista Daniel Noboa, que venceu com 52% dos votos. Um dos países mais pacíficos e politicamente estáveis da América Latina até menos de 10 anos atrás, o Equador teve a disputa eleitoral mais violenta de sua história em 2023, com vários políticos assassinados, inclusive o jornalista e candidato a presidente Fernando Villavicencio. Nas mãos da direita por seis anos e agora sob a presidência de um fascista, o país entrou numa espiral de violência tal que levou o presidente a decretar em janeiro Estado de Conflito Armado e 22 grupos do crime organizado transnacional como “atores não estatais beligerantes”.
Se isso não é a definição de guerra civil, o que é?
Assim, quando Lula se diz “assustado” com o uso de expressões como banho de sangue e guerra civil num país vizinho, sou obrigado a concordar com ele. Afinal, eu também estou assustado com a ascensão mundial da extra-direita. Mas nosso presidente foi enganado pela mídia, assim como o próprio Sakamoto, citado acima. Ainda assim, a fala do presidente está correta:
“a única chance de a Venezuela voltar à normalidade é ter um processo eleitoral que seja respeitado por todo o mundo”.
De qualquer modo, minha sugestão para Lula é seguir os conselhos de Maduro e Morales. “Eu não disse mentiras. Apenas fiz uma reflexão. Quem se assustou que tome um chá de camomila”, declarou o presidente da Venezuela. “Eu disse que se a direita extremista chegasse ao poder político na Venezuela haveria um banho de sangue. E não é que eu esteja inventando, é que já vivemos um banho de sangue, em 27 e 28 de fevereiro”, falou referindo-se ao conflito de 1989 que deixou um número até hoje incerto de mortos, provavelmente milhares.
Já segundo o ex-presidente da Bolívia, “novamente toda a direita internacional, aliada com uma longa lista de meios de comunicação, se prepara para tentar gerar violência na Venezuela. Mentem, tergiversam e pretendem não reconhecer os resultados das próximas eleições. Essa mesma receita usaram em vários lugares, incluindo o Golpe de Estado de 2019 na Bolívia. Não podemos deixar que a mídia nos engane com suas campanhas de mentiras. Nosso dever é defender a paz e a democracia em todo lugar. Estamos certos de que o povo venezuelano saberá defender a paz e sua Revolução”.