Por Valéria Regina Dallegrave*
Bacurau é impressionante pela coragem de levar às raias de fato, a violência muitas vezes simbólica contra nordestinos e brasileiros, no cenário nacional e internacional. Considerando a intenção das distopias de ficção científica como de nos alertar sobre futuros possíveis, que podem ser evitados, o filme torna-se muito importante no panorama atual de desvalorização da nossa cultura, em que há, da parte de alguns, completa subserviência aos Estados Unidos, com o representante (ilegítimo) do país imbuído do mais abjeto vira-latismo.
O filme de Kleber Mendonça Filho e Juliano Dornelles, dois pernambucanos, ousa. Mas não é de hoje que Kleber Mendonça faz isso. O Som ao Redor foi mais sutil quanto à violência, mas já apresentava um gostinho de Bacurau ao mostrar a tensão contínua presente na sociedade, na expectativa da violência. O diretor também não se omitiu, na estréia de Aquarius em Cannes, quando participou, junto com a equipe, da denúncia ao golpe em curso no Brasil.
Mas voltando a Bacurau, no início acompanhamos Teresa na viagem de retorno à cidade natal, para o funeral de sua avó, Dona Carmelita, falecida aos 94 anos, respeitada como grande matriarca do lugar. A estrada para chegar lá já traz um acidente, com caixões espalhados pela pista. O motorista, visivelmente tenso, não pára, sequer desvia dos caixões. É evidente que algo está muito errado.
Também é revelado logo que há um “foragido”, com uma recompensa oferecida pela sua cabeça – como em um western -, mas talvez não seja desejável entregá-lo. Precisamos descobrir mais sobre Lunga, e este é um dos pequenos mistérios que são entrelaçados no começo e vão se desvendando no decorrer da trama, assim como a estranha presença de discos voadores no sertão.
Estranho, aliás, é um bom adjetivo para o filme. No interior empoeirado de Pernambuco, a tecnologia está presente no sinal de wi-fi, em telas e sistemas de som que levam o audiovisual a todos cantos, desde o cortejo fúnebre até o carro de apoio ao Prefeito nem um pouco confiável – representante dos políticos canalhas e mal- intencionados (será que lembra algum em especial?). A ficção árida vai até um ponto de violência absurdo, em que as armas tornam-se elementos importantes para uma explícita cultura da violência e a vida humana deixa de ter valor.
Ou, talvez seja melhor dizer, especialmente algumas vidas deixam de ter valor. Nos estudos de jornalismo internacional já é evidente que acidentes de avião envolvendo mortes de europeus ou norte-americanos têm maior destaque do que com africanos ou brasileiros. Então, do ponto de vista internacional, será que a vida de um brasileiro vale o mesmo que a de um estadunidense? A resposta dos locais a isso é resistência, é a mesma dada à pergunta irônica “quem nasce em Bacurau é o quê?” “É gente!”
Estranha é, também, a mala com que Teresa chega, ostensivamente vermelha, conduzida de forma respeitosa e reverente pela coletividade até o interior da casa. Sem dúvida, ela simboliza as “vacinas” que podem salvar algumas vidas…
Aos poucos vamos conhecendo as diversas tensões que se acumulam. Logo depois de topar com os caixões na estrada, descobrimos que a escassez de água chegou ao ponto limite, em verdadeira guerra. Fica fácil entender o que já é muito bem conhecido no nordeste: o problema não é de seca, mas de cerca.
Dos estímulos químicos para suportar tal realidade, dois se colocam em oposição (seriam as pílulas vermelha ou azul de matrix?). Há os remédios tarja preta, que acompanham os mantimentos deixados pelo Prefeito Tony Jr e, segundo a médica (Sônia Braga, em personagem que deve ter sido criada especialmente para ela), são distribuídos no país inteiro. Ela alerta que a medicação deixa as pessoas lesadas (aí está uma boa explicação para o estado de coisas no país). Mas há também uma pílula “psicotrópica”, usada entre os moradores como espécie de hóstia, que parece mesmo uma pílula do mato…
marcus
30/11/19 at 17:21
esse seu incomodo com as representações regionais é, pra mim, justamente sobre o que o filme se trata. foi pra te incomodar mesmo.