B.Negão: “O Brasil nunca teve uma democracia plena”

Rafael Duarte I Agência Saiba Mais
Foto: Lucas Martins I Jornalistas Livres

B. Negão está sempre com a faca nos dentes. E mesmo nos momentos mais tensos, como quando teve um show interrompido pela Polícia Militar dia 27 de julho no município de Bonito (MS), diz que está pronto para qualquer batalha.

Circulando no domingo (4) pelo festival Comida de Verdade, evento organizado pelo Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) em parceria com o MST, na Ocupação 9 de Julho, em São Paulo, o rapper conversou com a agência Saiba Mais / Jornalistas Livres.

No episódio em que foi forçado a parar o show da banda B.Negão e Seletores de Frequência faltando ainda 1 hora para o encerramento, conta que foi algo inédito na carreira:

– Já tive parada de perseguição, prisão, correria da polícia, show cancelado pela Justiça, mas show interrompido no meio pelo que a gente está falando no palco foi a primeira vez”, afirma.

A censura ocorreu durante o festival de Inverno de Bonito (MS) logo após B.Negão denunciar a agressão de policiais a um professor da cidade. O fato teria ocorrido na noite anterior. O relato da violência foi feito pela própria vítima ao rapper ainda na passagem de som da banda, que decidiu fazer a denúncia no palco.

– Estávamos falando sobre as coisas que a gente sempre fala, Bolsonaro, Sérgio Moro e afins, falando sobre aquela invasão por garimpeiros em uma tribo do Amapá… e falamos também sobre uma coisa que rolou lá, a mais complicada, dois dias antes dois professores foram detidos e um deles agredido a noite inteira de forma a não deixar marca. O cara teve o celular roubado porque estava defendendo uma mina que dava uma oficina de skate. A polícia chegou, a mina ficou na frente e disse que não tinham por que fazerem isso. Ela foi presa por desacato, algemada, jogada num camburão e o cara foi junto. Aí começou todo esse negócio. A gente conheceu o cara na passagem de som, ele me contou a história e eu decidi contar essa história no show. Aí deu duas músicas e o show foi interrompido”, narra.

A polícia avisou à produção do show que a banda não encerrasse o show os policiais fariam o uso da força. Haviam mais de três mil pessoas assistindo à apresentação. Para evitar uma tragédia, B.Negão decidiu parar:

– Fatalmente a galera ia apanhar bastante, ia ter uma tragédia também porque nego ia revidar. Depois disso eles dispersaram a multidão mostrando arma, alguns casos com gás de pimenta. Então a polícia estava na pilha, com sangue nos olhos para fazer alguma merda, inclusive sem identificação e polícia sem identificação já viu, né ? O Brasil já tem a tendência de ser um estado policial e lá (em Mato Grosso do Sul) já é assim naturalmente, onde tudo é resolvido na bala normalmente, tem o agronegócio, o coronelário”, avalia.

O caso ganhou grande repercussão e, para o rapper, foi importante para jogar luz sobre os estados de exceção e de censura aos quais a população de Mato Grosso do Sul vêm sendo submetida. B.Negão não dissocia o que aconteceu em Bonito da atual conjuntura medo e perseguição que artistas e os movimentos sociais vêm sofrendo no governo Bolsonaro:

– Não tem como dissociar isso do momento atual que vivemos porque os caras estão empoderados pelo presidente deles, o Bozo. E os caras que já tinham esse lance (violência), naturalmente ficam mais fortes ainda achando que podem tudo. Acabou que esse caso deu uma repercussão danada, e por um lado foi bom para jogar uma luz para as pessoas verem o que está acontecendo naquele Estado. Lá a galera sofre em silêncio. A grande treta é essa: o cara revoltado comentando com a gente que estava sofrendo em silencio e com medo de falar, medo de perder a vida, perder o emprego”, diz.

Pergunto ao rapper se ele é otimista em relação ao Brasil. Nascido na periferia do Rio de Janeiro, B. Negão diz que nunca é pego de surpresa:

– Vou te dizer uma coisa: eu fiquei tranquilo, em relação ao Brasil, por 10 minutos quando o Lula foi eleito, sacou ? Porque 10 minutos depois da eleição, tipo depois daquele negocio “ahhhh, conseguiu !” aí eu fiquei “pô, mas será que vai mesmo?” Carta ao povo brasileiro, esse vice, hummm, tá… humm… aí já fiquei de novo… eu nunca achei que estava bom e nenhum momento, sacou ? Achei que estava menos pior, entendeu ? E daí, por isso mesmo, acabo ficando tranquilo para as batalhas porque não sou pego de surpresa nunca, estou sempre com a faca nos dentes.

Quando o rapper ouve os discursos sobre os riscos à democracia no Brasil, lembra da infância pobre e da violência policial sempre presente nas periferias do país:

– Tudo pode acontecer. O mundo em si, mais do que o país, parece que tem que babar pra começar de novo porque está muito torto, sacou ? Mas a parada é a seguinte: eu nasci dentro da ditadura militar. Então pra mim nada disso é surpresa… acabei tendo que crescer ligado em tudo, desde moleque. Na verdade, verdadeira, o Brasil nunca viveu uma democracia plena. A democracia é como se fosse um horizonte em que nós caminhamos em direção a ele. O Brasil é um limbo, tanto que ainda não resolveu a ditadura militar, sacou ? A maioria esmagadora dos demais países da América do Sul resolveu suas ditaduras militares, só o Brasil que não, preferiu jogar pra debaixo do tapete e deu no que deu. O tapete ficou grande e a parada veio pra cima. Essa é a conta que se paga por não ter resolvido isso. É uma treta geral, não dá pra saber o que vai acontecer. Mas independente disso o que se acredita tem que ser feito isso.

Bernardo dos Santos, o B.Negão, foi prestigiar o festival Comida de Verdade que também chamou atenção para as recentes prisões políticas de quatro líderes do Movimento dos Sem Teto do Centro (MSTC) – Preta Ferreira, Ednalva Pereira, Angélica dos Santos Lima e Sidney Ferreira da Silva. Para o rapper, eventos como esse é o que faz a diferença entre a civilização e a barbárie:

– É maravilhoso. Isso aqui é de aquecer o coração, acho que essa é a onda. Uma das primeiras coisas a ser proibida quando se tem uma ditadura instituída oficialmente são as reuniões. Então as reuniões são importantes, uma galera que não vejo a um tempão, estou conhecendo pessoas… então isso é extremamente revolucionário. Esse falar, essa troca de afeto, isso é o que faz a diferença entre a a civilização e a barbárie.

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