Bolsonaro e sua verdade sobre Moro

 

ARTIGO

Mateus Pereira e Valdei Araujo, professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto (UFOP) em Mariana

 

Em sua resposta à fala de despedida de Moro, Bolsonaro acerta para sua base! Se discordar do presidente, tá fora. Bolsonaro retoma as promessas de campanha e acusa Moro de ter um projeto pessoal de poder. Faz um balanço do governo. Para quê tanta gente, todo o ministério, para demitir um subalterno? Uma nova fase começa? Só um dos ministros de máscara e sem sapatos: Paulo Guedes. A próxima vítima? Ao recordar o episódio em que Moro o ignora em encontro casual em Brasília em 2017, o presidente reescreve a história de seu complicado relacionamento com Moro como uma espécie de casamento por interesse. Enquanto Bolsonaro se apaixonou, o ex-juiz queria apenas usar o seu corpinho presidencial.
A ideia central foi retirar as acusações políticas e policiais do centro da discussão. Quando recorre ao tema de que é difícil conviver com o Moro ele simplifica a disputa a partir da metáfora do casamento, novamente. Seu discurso também reforçou a noção de que Moro é movido pelo ego, pela vaidade e não pela causa pública, não pelo Brasil acima de tudo. A questão, para ele, é que Moro tem intenção de afastá-lo do povo brasileiro.
E fez até um balanço da relação, já deixando claro que Moro agora é um inimigo. Talvez o grande inimigo, o homem que quer tirá-lo da presidência.
Bolsonaro nega que teria pedido acesso ao relatório de inteligência. Mas reivindicou a ideia de poder falar diretamente com o chefe da Polícia Federal. E se reconcilia com sua base ao dizer que Moro criava dificuldades para o relaxamento da posse de armas e da compra de munições, que era uma pauta importante da campanha.
Síntese: Bolsonaro se mostra um mestre da comunicação para a sua base. É fantasia e negação da realidade não ver esse fato. Ele balançou, mas não caiu. Sua mensagem de combatente da corrupção foi reforçada. Um homem do povo, modesto e sem ambições pessoais. Afinal, ele é a Constituição e uma vítima ao mesmo tempo. Reconstrói a agenda e a relação com o oponente falso e vaidoso. Um discurso muito bem pensado, que nada tem de improviso além da aparência. O presidente deve ter pensado nesse discurso desde o dia em que convidou Moro para o ministério.
Muitos acharam a menção ao tema Marielle obscuro, mas a comparação entre as duas investigações, da facada e de Marielle, foi inúmeras vezes mobilizada pelo base bolsonarista. Confirma a sensação de que Bolsonaro, apesar de eleito, ainda é uma vítima do sistema.

Depois de Moro, Guedes também cai

O título é parcialmente verdadeiro, pelo menos até as 16 horas de hoje, 24/4. Dia que o ex-juiz Sérgio Moro se demitiu do governo Bolsonaro e faz sérias acusações ao presidente. Alguns chegaram a dizer que se esperava apenas um pedido de demissão, mas que fomos brindados com uma delação premiada. O bolsonarismo sobreviverá ao divórcio com o lava-jatismo? Ou seja, o bolsonarismo raiz, obsoleto, conseguirá sobreviver, sem alianças, com os setores “atualizados” da direita?

Vamos por partes. Primeiro Moro. Dizem que ele é um ótimo jogador de xadrez. Ao que parece cansou de jogar com o computador da IBM quando descobriu (que surpresa!) que a equipe da IBM ficava atrás dos panos querendo acessos ilegais ao jogo, ou melhor, aos relatórios e informações da inteligência da Polícia Federal. É claro que em tempos de capitalismo de vigilância o xadrez já não é o jogo da moda. O jogo, e a inteligência artificial cumprem o seu papel em, por exemplo, destruir as reputações de quem pula do barco.

Mas, os bons jogadores de xadrez, como se vê nesse acontecimento, pulam do barco querendo levar consigo o capitão. Já o capitão… se fosse um lutador de boxe, poderíamos dizer que balançou com um cruzado da plateia, isto é, o vírus, e pelo juiz da luta. O oponente, isto é, o lulismo ou mesmo a esquerda e a centro-esquerda, continua só se defendendo dos seus ataques e movimentos, que produzem mais agitação e distração do que qualquer outra coisa.

O lava-jatismo, diferente do bolsonarismo, vive do discurso da transparência, a dos outros, é claro. Como permanecer em um governo em que o presidente quer ter acesso, nas sombras, a relatórios da Polícia Federal? O mestre do xadrez viu que não ia para o STF e preferiu se guardar para a presidência, no momento em que o seu aliado estava parcialmente enfraquecido pelo vírus? Cansou dos olavistas?

Esse discurso, da total transparência do lava-jatismo, é um dos elementos que, ao longo dessas semanas, temos discutido em nossas contribuições aqui nos Jornalistas Livres. Na perspectiva do atualismo, como discutimos em nosso livro Atualismo 1.0, o desejo por transparência total é um dos traços perversos da era digital. A experiência do tempo atualista implica em uma pressão por ser e estar atual. Em um mundo que tudo muda rapidamente, quem não tem medo de ficar por fora? De não saber o que atua, o que impacta em você e no seu tempo. O atualista confunde aquilo que nos impacta com o que é noticiado infodemicamente. O atual se confunde  com as atualidades, ou seja, as atualizações em fluxo incessante das notícias, pouco importa se verdadeiras ou falsas. Mas ser contemporâneo, ou seja, atuar em seu tempo, transformá-lo,  é diferente de estar por dentro do fluxo incessante de notícias. As diversas infodemias de nosso tempo nos impedem, muitas vezes, de ver o acontecimento relevante. A saída de Moro é um bom exemplo. Ela não é apenas uma notícia, uma atualidade. Ela é um acontecimento, porque altera o presente, o passado e o futuro. 

O discurso da transparência é uma das promessas do lava-jatismo, que, agora, parece abandonar o bolsonarismo. E daí que sabemos que o pedido de demissão de Moro é mais uma jogada política do que qualquer revolta contra Bolsonaro. O escândalo do The Intercept mostrou que o discurso da transparência é um cheque em branco que só vale quando usado a favor do ex-juiz. Na cozinha da Lava Jato a intransparência foi a regra.

Assim, o discurso, em forma de projeto de uma sociedade futura transparente, sem sombras, sem corrupção, sem ilegalidades, não corresponde exatamente à prática dos seus agentes, que se utilizam de ferramentas que seriam de controle e transparência para objetivos obscuros e intransparentes, como ficou claro nas relações espúrias de Moro com Dallagnol e os procuradores da Lava Jato, na maior campanha de marketing jurídico-jornalístico da nossa história recente.

De algum modo, o funcionamento da Lava Jato não é muito diferente do funcionamento da Google e dos capitalistas da vigilância. Eles pedem um acesso ilimitado à sua privacidade, à sua vida íntima, aos seus dados, ao seu telefone, ao seu celular, com a promessa de que isso vai resolver inúmeros problemas, vai acabar com a corrupção, e terminam, na verdade, construindo grandes estruturas de poder e manipulação com as informações que reúnem.

Ao que parece, Moro cansou da concorrência atroz e sem limites do bolsonarismo, instituindo uma fissura na base que só o tempo dirá o tamanho. Mas não nos enganemos! Ele voltará com sua cruzada pela transparência e não seria improvável que ele encontre Bolsonaro para mais um duelo daqui a dois anos. Em dois anos haverá ainda bolsonaros?

A energia anti-sistêmica (contra tudo isso aí) se dividirá? Como a máquina bolsonarista de caluniar vai atuar? Que narrativas serão construídas para tornar o ex-juiz mais um malvado que quer destruir o capitão? O quanto da base de Bolsonaro estará disposta a desconstruir o ex-juiz de Curitiba? O presidente promete “restaurar a verdade” em sua live das 17h? Aguardemos novas atualizações, mas fiquemos atentos para não nos deixar levar pelo seu falso brilho.

Quinta, dia 23, quando a saída era ainda uma especulação, que alimentava o fluxo de notícia e a cortina de fumaça, já havia um meme interessante circulando nos grupos de esquerda:

O meme mostra que o discurso anticomunista pode colar em Moro? Difícil dizer. Mas não podemos subestimar Bolsonaro. A alegria de muitos pode ser passageira. Não vamos nos esquecer que nada aconteceu depois que a Globo divulgou as gravações entre Joesley e Temer. Bolsonaro ficará mais livre para continuar negociando com o centrão alguma maioria que o permita sobreviver à pandemia e ao emagrecimento de sua base? Seu governo será “temerizado”? Uma parte da base sentirá, mas, ao que parece, continuará fiel. É o que mostram esses dois aliados:

Nosso amigo bolsonarista continua #fechadocomBolosonaro: “É foda. De todo jeito, véi, tá certo de uma maneira, Bolsonaro não tinha que ter mandado o delegado embora não. Só mandou ele embora porque tava investigando o filho dele… E o filho dele é um fdp mesmo, e ele foi salvar o filho dele, ele se f…eu. E o Moro tomou as dores e saiu fora. Tá certo. Cabô. O foda é que não vai ter outra oportunidade igual essa, de gente honesta igual Sérgio Moro lá em cima – e até as intenções do Bolsonaro foram fatídicas [sic] , mas… ele foi… nessa hora que é foda a ética e a moral. O imoral vai salvar o filho, o ético vai prender o filho. Eu também salvaria meu filho. Foderia minha vida por ele. Por isso que eu sou imoral.”

Por outro lado, a campanha #Moro2020 já começou:

Nesse sentido, Guedes não deve sair por objetivos políticos. Mas, se saísse, seria também por outro acontecimento. Talvez não saia por não entregar o que prometeu. Assim, a tendência é que ele continue a sua cruzada em destruir o Estado em favor da concentração de renda e do aumento das desigualdades. O tempo dirá. Já o bolsonarismo continuará a se alimentar de uma memória revisionista da Ditadura Militar e do anti-petismo. Talvez até do anti-morismo? O traidor? É preciso pensarmos o quanto as previsões de agravamento da tragédia da pandemia não podem também estar por trás desse movimento de abandono do barco.

Encerramos o texto às 16h. Infelizmente, não estaremos atualizados às 17h. 

Dizem que alegria de pobre dura pouco. Pode ser. As mortes no Brasil, causadas pela Covid-19, dobram a cada cinco dias. O ritmo parece superar EUA e Europa, mesmo com as sub-notificações. O caos político só piorará a vida dos mais vulneráveis. Mas, se entregar ao riso é, também, inevitável, uma forma mesmo de sobrevivência. Em mais um dia agitado da política brasileira, nos despedimos com o fluxo de memes que não param de chegar. Parece que o atualismo é também uma estratégia do nosso tempo para não morrermos de tédio, ou medo.

Esse coluna artigo com a pesquisa e colaboração de Mayra Marques, doutoranda em história pela UFOP

 

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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