Atemporal: Os 10 pontos dos Panteras Negras ontem e hoje

Reflexões sobre a luta antirracista nos EUA e no Brasil sob os olhos que quem vive o racismo na pele e se inspirou pela exposição “Todo poder ao povo! Emory Douglas e os Panteras Negras”

 

  1. Queremos liberdade. Queremos o poder para determinar o destino de nossa Comunidade Negra.
  2. Queremos emprego para nosso povo.
  3. Precisamos acabar com a exploração do homem branco na Comunidade Negra.
  4. Nós queremos moradia, queremos um teto que seja adequado para abrigar seres humanos.
  5. Nós queremos uma educação para nosso povo que exponha a verdadeira natureza da decadente sociedade Americana. Queremos uma educação que nos mostre a verdadeira história e a nossa importância e papel na atual sociedade americana.
  6. Nós queremos que todos os homens negros sejam isentos do serviço militar.
  7. Nós queremos o fim imediato da brutalidade policial e assassinato do povo preto.
  8. Nós queremos a liberdade para todos os homens pretos mantidos em prisões e cadeias federais, estaduais e municipais.
  9. Nós queremos que todas as pessoas pretas quando trazidos a julgamento sejam julgadas na corte por um júri de pares do seu grupo ou por pessoas de suas comunidades pretas, como definido pela Constituição dos Estados Unidos.
  10. Nós queremos terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz. E como nosso objetivo político principal, um plebiscito supervisionado pelas Nações-Unidas a ser realizado em toda a colônia preta no qual só serão permitidos aos pretos, vítimas do projeto colonial, participar, com a finalidade de determinar a vontade do povo preto a respeito de seu destino nacional.

Falar sobre os Panteras Negras não se trata de fazer um pequeno resumo escolar com palavras amontoadas tentando explicar o que aconteceu. Trata-se, isso sim, de trazer de volta a consciência comunitária do povo negro que nunca morreu, o desejo de justiça e a indignação com o que fizeram e ainda fazem conosco. Tratar desse partido hoje, décadas depois, não é como ir ao zoológico, tirar fotos dos animais, fazer uma pequena pesquisa na internet. Trata-se principalmente de acordar cada Pantera dentro de cada irmã e irmão de cor, abrir as jaulas, reacender o instinto de união, comunidade e esperança, tendo apenas uma presa em comum: o racismo.

Na década de 60, nos Estados Unidos, policiais perseguiram, agrediram, criminalizaram, prenderam arbitrariamente a população negra. O número de pessoas dentro da prisão era cada vez maior, a miséria assolava vários estados do Sul do país, e os resquícios da escravidão acarretavam o aprofundamento das desigualdades sociais. Foi dentro dessa realidade que Bobby Seale e Huey P. Newton nasceram. Os dois vieram de famílias pobres dos estados do Sul, tentando ganhar a vida. Conheceram-se em Oakland, Califórnia, quando estudavam no Merritt College. Lá, começaram a participar de movimentos estudantis por igualdade racial, raiz principal do Partido dos Panteras Negras, que foi criado justamente para autodefesa da população negra, contra a injusta repressão da polícia.

Eles organizaram pequenas patrulhas comunitárias compostas por negros, que se vestiam de preto, jaquetas de couro, óculos de sol – essa se tornou a “identidade visual” do grupo –, sempre andando armados, com as armas à mostra. As patrulhas impunham respeito diante da polícia autoritária e vigiavam sua ação dentro dos bairros, explicitando o sentido de comunidade a que pertencia qualquer negro revistado pela polícia. Eles formularam o Programa dos Dez Pontos, que articula e define as perspectivas dos Panteras Negras.

Do gênero felino, esses animais não foram feitos pra ficarem enjaulados. Uma pantera sabe se cuidar e cuidar do seu povo. Esse é, basicamente, o ponto número um dos Panteras Negras. O governo racista daquela época não era capaz de garantir o direito do povo negro, seja de Oakland, seja de qualquer outra cidade onde os negros viviam. Mais de 50% da população do Alabama vivia abaixo da linha da pobreza. A articulação dos Panteras Negras era urgente.

A questão da pobreza nos leva ao ponto dois: A necessidade de emprego para a população – talvez esta idéia seja também atual para o povo brasileiro e a nossa realidade. Nascer numa sociedade de configuração capitalista exige que a população trabalhe para se sustentar, garantir as necessidades próprias e das famílias e os direitos básicos, cada vez mais retirados. A maioria das empresas dos Estados Unidos daquela época possuía uma postura racista institucional – traço ainda presente, mesmo que mascarado, em empresas do Brasil – seja ela explícita quando um negro nem chega a ser contratado; ou quando nosso tratamento dentro das firmas é diferenciado do tratamento de pessoas brancas, o que também é refletido no nosso salário mais baixo e na falta de dinheiro para ter alimento sobre a mesa.

Recentemente, mais um negro foi constrangido ao tentar entrar em um shopping na região nobre de São Paulo. A comunidade negra já está farta de ver tal cena. Nos Estados Unidos dos anos 60, um negro nem poderia se sentar no mesmo banco de ônibus do branco, e dividir espaços, seja na escola, no hospital ou até mesmo na rua. A comunidade branca explorou exponencialmente o trabalho provindo das mãos negras, tanto para criar a ferrovia que corta de Leste a Oeste os Estados Unidos, quanto para construir os grandes shoppings da cidade de São Paulo em seus bairros nobres. Ainda hoje, nossa cor nos deslegitima a estar dentro desses ambientes que foram construídos por nossas mãos. Não à toa, o terceiro ponto reforça que queriam (e queremos!): que o homem branco e a classe burguesa parem de explorar a comunidade pobre e negra apenas para construir seus prazeres.

Morro do Alemão, Capão Redondo, Belágua no Maranhão e tantos outros lugares no Brasil onde a população pobre, em maioria negra de linhagem afrobrasileira, se esforça para tentar sobreviver sobre os duros custos de vida. Por sermos descendentes de escravos, temos que multiplicar nossas forças (quando temos), para tentar ter um conforto de vida e uma casa (sonho ainda de muitos brasileiros). Dificuldade essa que a burguesia, e a classe média oriunda da Casa Grande nunca precisou passar e enfrentar, pois sempre terá aquela velha herança guardada na família. Quando falamos de racismo estrutural, falamos dessas estruturas que vêm sendo consolidadas há anos, cujas conseqüências ainda são enfrentadas pela população negra. A possibilidade da família negra de ter uma casa, um lar pra morar, é o tema do quarto ponto do programa.

Aos poucos, é possível ver que o sentido da palavra “educação” ganha novos moldes com o tempo. O que deveria ser entusiasmo pelo saber, na prática, torna-se prisão de horas, onde os alunos não querem permanecer. Quando dizem que eles estão sendo “educados”, muitos se sentem adestrados, simplesmente para fazer provas que serão capazes de “salvar as suas vidas”. Os problemas dentro da educação brasileira são mais que reais: são visíveis. Um deles, em específico, vai ao encontro do problema da educação na sociedade norte-americana: a invisibilidade do povo negro dentro dos livros didáticos e nos currículos escolares.

Se por vezes somos representados, nossa história é sempre curta e com o mesmo roteiro: Escravidão, escravidão e escravidão. Não sabemos de nossas origens, quem veio antes de nós, nossas contribuições para a sociedade. Não sabemos quem foram nossos escritores, músicos, artistas, poetas. Não sabemos quem são as mulheres negras dentro da nossa cultura, e os papéis que elas exercem na nossa sociedade. As leis federais 10.639/03 e 11.645/08 vieram para mudar essa história nas escolas, mas sua aplicação ainda é insuficiente. Querer uma verdadeira educação e não poder obtê-la por ser encoberta por livros de histórias que apenas representam a população branca e européia, só confirma a necessidade do quinto ponto dos Panteras Negras.

Os pontos seis, sete, e oito do partido conversam entre si. Nos 16 anos de vida dos Panteras, um dos assuntos que sempre esteve presente foi a guerra do Vietnã, onde os Estados Unidos intervieram brutalmente, sem o consentimento de boa parte da população americana – essa parte inclui os Panteras Negras, que foram até o Vietnã dar um aperto de mão na população que ali sofria, em um gesto de solidariedade. Os Panteras Negras haviam percebido que o mesmo Estado que assassinava a população negra nas ruas também enviava seus jovens para morrer na guerra. O mesmo negro que antes era cercado pela violência policial agora era obrigado a “defender seu país”. O mesmo país que nunca os defendeu. Os Panteras exigiram a isenção do serviço militar e lutaram por meio das patrulhas para que a violência policial acabasse. A violência é a mesma que se vê presente em vários atos e manifestações ainda hoje, aqui, quando os secundaristas saem exigindo uma educação melhor, quando a população exige um presidente legítimo, eleito pelo voto democrático, ou quando Rafael Braga é preso pelo esdrúxulo motivo de portar de Pinho Sol, pois, para a polícia, sua cor de pele fala mais do que suas atitudes.

O Brasil possui suas prisões em carga máxima e tem a quarta maior população carcerária do mundo. Muitas dessas prisões, seja aqui, seja nos EUA, são provocadas pela polícia racista: jogam o pó branco básico dentro da bolsa e enquadram mais um negro…

A realidade de um negro é somente do negro, e somente outro negro pode entender. Mas estamos cheios de acadêmicos e estudiosos brancos que, por serem tão supridos de inteligência, pensam ser capazes de entender exatamente o que acontece com a comunidade negra.

Uma das maiores dificuldades que temos na luta contra o racismo é esta: brancos que acham que entendem a nossa vida. Querem protagonizar ou se provar mais entendidos do que acontece conosco. Não serão capazes. Só quem está em nossa pele sabe o que é estar aqui. Todo apoio é bem-vindo, mas somos nós, negros, quem sabemos os limites entre apoiar e atrapalhar.

A experiência dos Panteras Negras pode nos dar aporte histórico para pensar sobre essa questão. Não havia um interesse de entender o que acontecia com a população negra. Por isso, os Panteras reivindicavam a presença de negros no sistema judiciário. Queriam uma justiça que se preocupasse também com os filhos negros de 14 anos na rua voltando muito tarde pra casa, queriam uma justiça que entendesse que não é confiável uma polícia que dá enquadros em jovens negros e enfia o pacotinho branco dentro de suas mochilas.

Querer terra, pão, moradia, educação, roupas, justiça e paz, minimamente deveria ser lei, regra, e um dever do governo. Esses desejos não alcançados fazem parte do décimo ponto dos Panteras Negras e das reivindicações de comunidades africanas, indígenas e tantas outras comunidades pobres, esquecidas. Os exemplos da realidade nos mostram que essas necessidades ainda são muito atuais.

As manifestações que acontecem ao redor do mundo de populações fartas de governos que não as ajudam, e que, sob o nome da “democracia”, escondem do povo seus verdadeiros interesses, provam que a luta dos Panteras Negras é necessária e atual como antes.

Você quer saber mais sobre os Panteras Negras? Tem uma exposição maravilhosa sobre eles no Sesc Pinheiros, em São Paulo, até o dia 2 de julho. Todas as terças, quartas, quintas, sextas e sábados, das 10h30 às 21h30. Rua Paes Leme, 195, Pinheiros SAO PAULO | CEP: 05424-150

 

COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. saber mais sobre nosso povo , nossa historia e essencial para o povo negro !!!
    Os 10 pontos dos panteras Negras foi e ainda é essencial para a população

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