Assistir “…E o Vento Levou” com extras não nos impede de gostar do filme

Hattie McDaniel, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel de Mammy, em cena do filme
Hattie McDaniel, vencedora do Oscar de melhor atriz coadjuvante pelo papel de Mammy, em cena do filme

Por James Cimino, especial para os Jornalistas Livres de Nova York

Era uma vez um filme, vencedor de oito Oscar, indicado a 13, um dos primeiros grandes épicos do cinema, que tinha como pano de fundo a guerra civil americana, mas que mostrava a escravidão como algo “benigno”, quase que um refúgio para os ineptos negros, cuja missão nobre na Terra era servir os seus senhores brancos. Está é uma versão de “…E o Vento Levou” que, digamos, o vento levou do catálogo da HBO Max após o roteirista John Ridley (“12 Anos de Escravidão”) publicar um editorial criticando o caráter revisionista do filme.

Apesar do debate infundado de que o filme estaria sendo censurado, ele volta para o catálogo do serviço de streaming, apenas duas semanas depois, em uma nova versão: mais completa, mais honesta, mais informativa, mais histórica, tudo isso sem cortar ou adicionar uma cena, um diálogo sequer no corte original de 1939, dirigido por Victor Fleming e estrelado por Vivien Leigh, Clark Gable, Olivia de Havilland, Leslie Howard e Hattie McDaniel.

Agora, quem assistir ao filme verá um prólogo de cinco minutos apresentado pela professora de cinema da Universidade de Chicago Jacqueline Stewart em que ela aponta ao mesmo tempo a grandiosidade da obra e seus erros históricos. Após essa pequena introdução, começam os créditos: primeiro Clark Gable, o cafajeste Rhett Butler, embora quem apareça em quase todas as cenas do longa que tem cerca de 3 horas e 40 minutos seja o segundo nome, a inglesa Vivien Leigh, que interpreta a inescrupulosa e cativante heroína Scarlet O’Hara. Em seguida, aparecem os nomes de Leslie Howard, que interpreta o melancólico Ashley Wilkes, e Olivia de Havilland, a íntegra Melanie Hamilton. De Havilland, aliás, é a única atriz viva do elenco e completou nessa quinta-feira (2) 104 anos.

Após a ficha técnica, elenco é reapresentado por núcleos. Hattie McDaniel, Oscar Polk e Butterfly McQueen, respectivamente os escravos Mammy, Pork e Prissy, aparecem no núcleo de Tara, obviamente após os atores brancos.  Os créditos do filme, aliás, representavam as desigualdades raciais e de gênero existentes na indústria do cinema e em uma sociedade ainda racialmente segregada por força de lei.

Mas também os créditos representam o tamanho do cacife do artista. Clark Gable era a estrela do filme, e Vivien Leigh, embora tenha dado uma das duas grandes performances de sua vida e certamente uma das melhores da história do cinema, era apenas uma atriz inglesa iniciante, por isso o nome dele aparece primeiro. No caso dos coadjuvantes, no entanto, tanto Leslie Howard quanto Olivia de Havilland tinham o mesmo quilate, embora Melanie seja uma personagem que também apareça muito mais que seu marido Ashley. Que o nome de Howard apareça antes de De Havilland nos faz pensar no machismo que em muitos casos ainda persiste em Hollywood.

Logo em seguida vem a primeira fantasia do filme: um texto introdutório que explica ao espectador que mundo é esse em que ele está entrando. E este mundo à parte, como diz textualmente a personagem de Olivia de Havilland, é “uma terra de cavalheiros e campos de algodão chamada O Velho Sul”. E continua: “Aqui neste belo mundo, o cavalheirismo rendeu sua última homenagem. Aqui foram vistos os últimos cavalheiros e suas belas; escravos e seus senhores. Procure este lugar apenas nos livros, porque ele nada mais é que um sonho a se recordar. Uma civilização que o vento levou…”

Antes de continuar a analisar suas falhas e destacar seus acertos, é importante destacar outros dois extras que aparecem no catálogo da HBO Max logo abaixo do filme, além do prólogo. Em 2019, quando o filme completou 80 anos de lançamento, o canal TCM promoveu um debate chamado “…E o Vento Levou — Um Legado Complicado” com a participação da produtora Stephanie Allain, de “Cara Gente Branca”, da autora do livro “Frankly My Dear”, Molly Haskell, além da professora Jacqueline Stewart.

E para celebrar o legado de Hattie McDaniel, a Mammy, primeira atriz negra da história a ganhar um Oscar, há um episódio de cinco minutos da série do canal TCM “What a Character” (“Que Personagem”) dedicado à atriz.

Os erros

A grandiosidade do filme nos cega para suas falhas no que diz respeito à escravidão. Mas também é importante mostrar que o material extra nos abre os olhos para o esforço que o produtor do filme, David O. Selznick, teve em não repetir o legado de “Birth of Nation”, de D.W. Griffith, que provocou o renascimento da Ku Klux Klan. O uso da palavra “negro”, por exemplo, foi negociada com a NAACP (Associação Nacional para o Avanço das Pessoas de Cor, na sigla em inglês), para, ironicamente, dar mais veracidade à história.

Aliás, o longa elimina a Ku Klux Klan de uma sequência em que Scarlet é atacada ao atravessar de carroça pelo meio de uma favela. No filme, ela é salva por um ex-escravo de sua fazenda. Posteriormente, seu marido Frank Kennedy e o nobre Ashley Wilkes vão vingar sua honra e incendeiam a favela, não sem antes matar alguns negros. No livro, quem pratica essa vingança é a KKK, conforme explicar a professora Jacqueline Stewart. “No livro, aqueles personagens fazem parte da KKK.”

A principal crítica feita durante o painel de 80 anos do filme, no entanto, é sobre o caráter dos escravos neste fantasioso mundo que ignora a brutalidade da escravidão sobre a qual essa sociedade foi erigida. Nele, os negros são ou serviçais, nobres por sua devoção a seus senhores brancos, ou ineptos.

Segundo a professora da universidade de Chicago, a secessão é retratada como “causa perdida” não apenas na indústria do entretenimento, mas também na academia. Segundo ela, “…E o Vento Levou” relata uma “perda irreparável” desse modo de vida.

Inclusive, quando os Yankees (os soldados da União) se aproximam de Atlanta, vemos uma cena em que Scarlet cruza com os escravos de Tara que estão marchando, sorridentes e felizes, para a linha de frente, onde irão cavar trincheiras para os confederados.

“No filme, a escravidão é vista como benigna. Há uma suposta nobreza nisso, porque mantém o negro em seu lugar devido, que na verdade é um lugar feliz e seguro, enquanto que após a guerra, no período imediatamente posterior à abolição, a reconstrução, tudo cai por terra. Ou seja, os negros não têm capacidade de se guiarem a si mesmos”, complementa a professora.

A autora Molly Haskell também aponta esse retrato “demonizante” do pós guerra, segundo ela como se a abolição tivesse sido uma falha completa, já que os negros acabam se tornando ou favelados ou se aliando aos malvados Yankees. No entanto, Haskell destaca que o filme dá ao sul o que eles não tiveram na vida real: a fantasia da vitória.

Mas o filme também deixa implícito que o trabalho dos escravos nos campos de algodão não era necessariamente honrado. Quando Scarlet e as irmãs trabalham na colheita de algodão após Tara ter sido saqueada pelos Yankees, vemos elas ficarem com as mãos calejadas, emagrecendo, terem os cabelos desgrenhados, os vestidos sujos e rasgados e cada vez menos parecerem com aquelas beldades do começo do filme que disputavam os “cavalheiros” nos churrascos na fazenda.

No entanto, logo depois, vemos o pai de Scarlet, já delirante após a guerra, falando para a filha que não estava gostando do jeito que ela tratava Mammy e Prissy. “Devemos tratar muito bem os nossos servos, especialmente os escurinhos (darkies, em inglês)”, num diálogo que claramente tem como intuito dizer que os escravos eram tratados com humanidade.

Isso não era verdade nem mesmo nos bastidores do filme, quando nem havia mais escravidão. Butterfly McQueen, que interpreta a mentirosa Prissy, teve que negociar com o diretor uma cena em que Scarlet a esbofeteia. Segundo os debatedores, durante a filmagem, Vivien Leigh foi orientada a bater de verdade em McQueen. Em resposta, ela não estava entregando o resultado desejado pelo diretor. Ela então disse ao diretor que só daria a performance desejada se aquela branca não batesse mais em sua cara.

A força do filme é feminina

 

Apesar de tudo isso, como ainda conseguimos gostar do filme e nos emocionar com ele? Essa foi a primeira questão respondida pelas debatedoras: a força das personagens femininas, especialmente, Scarlet e Mammy, mas também Melanie.

“Scarlet é inescrupulosa, maltrata todos que ela ama, mas além da excitação de ver uma mulher tão dona de si, especialmente no sul, onde os homens brancos não possuíam apenas os escravos, mas também suas mulheres, eu acho que a gente torce por ela porque Rhett, Mammy, Melanie e Ashley a amam apesar de todos seus defeitos”, analisa Molly Haskell.

A produtora Stephanie Allaine diz que o que sempre a atraiu no filme foi o fato de Scarlet ser uma personagem que não é submissa, mas que se coloca em pé de igualdade com os homens. Mesmo em uma cena em que Rhett Butler, ferido de ciúme, ameaça esmagar sua cabeça com as próprias mãos, ela não se intimida: “Tire suas mãos de mim, seu bêbado idiota!”, diz a altiva personagem.

“Ela é resiliente, não desiste nunca. Mas o filme tem outra personagem que me atrai muito que é a Mammy, que é inteligente, sábia e destemida. Ela é a consciência do filme. E, além disso, ela é a única que enfrenta Scarlet e, com astúcia, a convence a fazer o que é certo.”

No filme, aliás, Mammy é um papel muito maior que no livro, graças ao produtor David O. Selznick e à performance cativante de Hattie McDaniel, que em inglês não tem os cacoetes ridiculamente racistas da dublagem brasileira. Até a autora do livro, Margareth Mitchell, apontou que, na plantation, nenhuma escrava, por mais status que tivesse dentro de casa, gritaria da janela com uma sinhazinha como acontece no filme.

Filme é anti-guerra

 

“…E o Vento Levou” pode ser um filme que romantiza a escravidão, mas seus dois protagonistas são os maiores críticos da Confederação e da guerra que dela se sucedeu. Isso fica bem claro na primeira aparição de Rhett Butler, quando os sulistas estão reunidos na fazenda de Ashley Wilkes se vangloriando de um ataque do general Robert E. Lee que forçou o exército do presidente Lincoln a recuar. Butler, um homem de reputação duvidosa, explica que o sul não tem sequer uma fábrica de canhões e que a única coisa que eles têm são escravos, algodão e arrogância. Em uma cena posterior, ele diz a Scarlet que aquela guerra é um desperdício em nome da teimosia em se manter no passado.

Mas, novamente, é o no cinismo de Scarlet O’Hara que vemos talvez a maior declaração de repulsa ao regime escravagista do sul. Quando ela assume a madeireira de seu marido, contrata prisioneiros de guerra sulistas para cortar árvores para seu negócio. Eles lhes são apresentados por um feitor, que lhe pede “carta branca” para lidar com eles.

O nobre Ashley faz uma objeção dizendo a ela que a tal carta branca significa liberdade para bater e subnutrir os prisioneiros, que ele prefere contratar negros libertos, mas Scarlet se opõe dizendo que o preço que eles cobram iria quebrar o negócio. Ashley então diz que se recusa a lucrar às custas de trabalho forçado e do sofrimento dos outros. Ela, então, lhe dá um xeque-mate: “Você não era tão seletivo assim quando possuía escravos.”

Neste ponto da narrativa, Scarlet já havia jurado por Deus que jamais passaria fome novamente, nem que precisasse matar, roubar ou trair. Também havia decidido vencer os Yankees em seu próprio jogo, ou seja, ela se torna uma yankee, nem que seja às custas de seu próprio povo.

Para as debatedoras, essa postura da personagem torna o filme um crítica à guerra civil americana. “Scarlet não é mais aquela menina simplória, mas sobrevivente como é ela vai fazer de tudo para vencer. Porque no fundo ela não acredita na guerra nem naquela filosofia ultrapassada que a originou. Scarlet na verdade se torna a antítese do sul.”

Portanto, a experiência de assistir a “…E o Vento Levou” com todo esse debate e contextualização não apenas é mais rica intelectualmente, como tampouco nos impede de gostar do filme apesar e também, por que não, por causa de suas contradições. Ao contrário, todo esse material nos abre os olhos para o caráter insidioso daqueles que usam o cinema para moldar a realidade e reescrever a história, como bem aponta, ao fim do debate, uma pessoa da plateia.

“Acho que estamos sendo muito tolerantes com o retrato que se faz dos confederados, não apenas no filme. Hoje você faz uma tour por Charleston e eles mostram um lugar onde foi um mercado, mas não dizem que era um mercado ‘de escravos’. Nas plantations, a mesma coisa. Você vê em algumas delas uma placa explicando que ‘aquela plantation foi construída com trabalho não remunerado’, como se aquelas pessoas tivessem ido voluntariamente trabalhar ali.”

COMENTÁRIOS

3 respostas

  1. Deixem “E o vento Levou” no seu lugar na história do cinema. Ele retrata os personagens de sua época! Quem gosta do filme não necessariamente concorda com ele! Óbvio! A sua narrativa mostra bem no que os EUA se tornou após aquela guerra! Se for seguir assim olho por olho e dente por dente, como ficam os romances que abordam escravidão no Brasil? Também temos uma história vergonhosa de escravidão. Deixem o filme em paz….no fim, o que importa na trama é a terra vermelha de Tara e não importa quem será explorado por seus donos inescrupulosos e isso não invalida o filme.

  2. Continuo não gostando desse filme, scarlet não se tornou meu ‘ídolo feminista de empoderamento’ e usar a época para justificar essas monstruosidades não convence mais, pois as coisas mudaram e ainda precisam mudar mais porque já existiam pessoas que pensavam diferente de tudo isso. O livro consegue ser ainda pior que o filme.

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