As universidades públicas e o Fundeb

A Universidade pública se pensa mais como referência para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia do que propriamente para as políticas públicas de educação no Brasil, em especial de educação básica

O debate está posto, o campo das disputas ainda está aberto. O tempo urge, e não basta apenas para fazer parte disso afirmar e fazer a crítica de que há um projeto neoliberal em curso que tenta vampirizar a educação no país, se pouco ou quase nada a Universidade pública tem feito para disputar esse espaço e oferecer como alternativa um projeto de educação pública para o país, para todos os níveis, em outros moldes.

Wagner Geminiano dos Santos, doutor em História pela UFPE, professor das redes municipais de Água Preta e São José da Coroa Grande (PE) e ex-secretário de Educação de São José da Coroa Grande

Há no Brasil, do ponto de vista legal, desde pelo menos a aprovação da Constituição Federal – CF em 1988 e da Lei de Diretrizes e Bases da Educação – LDBEN em 1996, o estabelecimento de uma relação hierárquica entre o “ensino superior” e a “educação básica”. Esses marcos legais acabaram, com isso, regulamentando uma relação que já vinha se constituindo desse modo desde pelo menos o final da década de 1960 e da reforma universitária implementada pela Ditadura Civil-Militar no país.

De lá para cá a Universidade pública se consolida no Brasil como o principal lugar de produção do conhecimento científico por estas plagas. A Universidade passou a ser vista e entendida como aquela que forma cientistas e produz conhecimento científico de excelência. Ao longo desse período, os outros dois pilares em que se assetam a universidade humboldtiana, o ensino e a extensão, foram passando a segundo plano, até mesmo dentro dos centros e departamentos de educação, notadamente nas pós-graduações. A pesquisa tornou-se hegemônica e central em detrimento dos outros dois pilares.

A Universidade pública, nesse sentido, se pensa mais como referência para o desenvolvimento da ciência e da tecnologia do que propriamente para as políticas públicas de educação no Brasil, em especial de educação básica, muito embora faça parte da estrutura do Ministério da Educação. Isso tem provocado alguns efeitos bastante nefastos para a educação pública no país. À medida que as universidades públicas foram se ausentando não necessariamente de discutir o ensino e a educação básica – ela os toma como objetos de pesquisa -, mas, sobretudo, de formular políticas públicas e de intervir politicamente no espaço público com o objetivo de promover, pautar e implementar um projeto de educação pública para o país, nos seus diversos níveis, um vazio foi sendo criado e que, ao longo das últimas duas décadas, vem sendo ocupado pelas fundações, seus institutos e seus braços, como, por exemplo, a Fundação Lemman, o movimento Todos pela Educação, o Instituto Ayrton Senna e congêneres, a quem grande parte da Universidade acusa de serem instrumentos da agenda neoliberal para a educação no Brasil.

Essa ausência da Universidade pública sobre os debates, a implementação e as pautas que orbitam as políticas públicas de educação básica no Brasil, se fez sentir recentemente de forma bastante sensível nas discussões acerca do Novo Fundeb. Nesse debate fundamental para o futuro da educação pública no país, a Universidade foi o grande ausente, mais até que o próprio desgoverno Bolsonaro e seu projeto de destruição da educação tocado pelo atual MEC. Pouquíssimas vozes vindas das instituições universitárias públicas se levantaram publicamente em defesa do Novo Fundeb como política permanente de financiamento da educação básica ou até mesmo como instrumento fundamental de melhoria da estrutura, da carreira dos professores e profissionais da educação e da qualidade do ensino básico no Brasil.

Imperou um silêncio sepulcral e muito simbólico, que explicita o papel que a Universidade, ou grande parte dela, se atribuiu nos últimos anos quando se trata de discutir políticas públicas de financiamento da educação básica no Brasil: o lugar do observador crítico, daquele que fala só quando é instado pelo Estado a emitir um parecer técnico a respeito de tal ou qual questão. O lugar da competência científica e técnica, que requer suposto distanciamento para não se misturar com o mundo da política ou da arena das relações de poder que constituem todo processo de implementação de política pública.

Concordo que esse lugar da crítica é fundamental. Mas, por melhor e mais “isenta” que ela possa ser, pouco contribui para alterar o jogo e, sobretudo, para garantir a efetivação de uma política pública que beneficia milhões de brasileiros como o Fundeb, e que de forma indireta é o que garante público qualificado, diverso, plural para os bancos universitários. Como não se fazer presente como um ator institucional importante nessa disputa? Essa é uma pergunta que as universidades públicas e seus órgãos representativos precisam responder com urgência, para si mesmas e para a sociedade.

Além disso, as Universidades públicas pouco têm atentado para outra questão fundamental que está diretamente associada ao Fundeb. Ele representará, a partir do próximo ano, uma cifra de cerca de R$ 200 bilhões a ser investido de forma direta na educação básica. É um recurso que não está sob o tacão discricionário do orçamento da União e o arbítrio de Paulo Guedes et caterva. Estados e municípios terão acesso direto a esses recursos para investirem em Manutenção e Desenvolvimento da Educação, nos profissionais da educação e nos seus quadros de professores. Assim, formação inicial e continuada de professores, materiais didáticos regionalizados e paradidáticos, plataformas e cursos para gestão escolar, suporte técnico para o funcionamento e planejamento das redes: tudo isso são serviços a serem ainda mais demandados pelas redes estaduais e municipais a partir do próximo ano.

Há aí um espaço enorme a ser disputado pelas Universidades públicas. Em tempos de política de estrangulamento financeiro das universidades e da pesquisa, com cortes de bolsas e recursos, olhar para o Fundeb pode ser uma luz no fim do túnel para a academia. Firmar convênios com estados e municípios para ofertar formação continuada qualificada, ampliar o alcance de programas como os PROFs, o PIBID e a Residência a partir destes convênios, redirecionar parte das pesquisas dos departamentos de educação para produção de material didático regionalizado, assim como as próprias editoras universitárias para que possa entrar no circuito absolutamente rentável da produção de livros didáticos, são apenas alguns caminhos possíveis de atuação.

Enfim, as possibilidades são imensas e ainda estão em aberto. Cabe à Universidade querer disputá-las, mas para isso precisa sair desse lugar privilegiado que lhe coloca no pedestal de uma suposta superioridade moral para fazer a crítica do mundo lá fora, mas negando-se a participar de sua construção mais efetiva. É urgente pular o muro e vir disputar o mundo lá fora. A autonomia universitária não pode ser barreira para intervir e pautar a realidade que a circunda e atravessa. É preciso recuperar o espírito que esteve presente em intelectuais como Anysio Teixeira que viam na Universidade Pública não apenas um lugar de formação de pesquisadores, mas também de quadros dirigentes para o país, de sujeitos capazes de intervir na nossa realidade, de propor políticas públicas, de formular projetos de país, de nação.

O que se pede, por hora, não é muito: é que a Universidade pública tenha ao menos um projeto de educação pública para o Brasil ou até mesmo para cada estado onde esteja situada, e que passe a disputar a partir deles instrumentos tão importantes para o futuro da educação pública, como o Novo Fundeb. O debate está posto, o campo das disputas ainda está aberto. O tempo urge, e não basta apenas para fazer parte disso afirmar e fazer a crítica de que há um projeto neoliberal em curso que tenta vampirizar a educação no país, se pouco ou quase nada a Universidade pública tem feito para disputar esse espaço e oferecer como alternativa um projeto de educação pública para o país, para todos os níveis, em outros moldes. Isso já seria um bom começo.    

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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