As caminhadas do curta-metragem

Peripatético, curta-metragem de 2017, é um dos mais emblemáticos filmes para se perceber o novo caminhar do cinema no Brasil. Até o dia 19 de outubro estará disponível para ver gratuitamente em uma Mostra online de Cinema Brasileiro Contemporâneo no site do Itaú Cultural.
Foto divulgação

Por André Okuma | Jornalistas Livres

O curta-metragem é um formato enxuto em diversos sentidos e sua viabilização não depende fundamentalmente de leis de fomento e patrocínios (ainda que sejam absolutamente importantes), como ocorre com os longas-metragens de maneira geral. O curta em sua essência é um produto audiovisual menos burocrático, em que o realizador possui maior liberdade de experimentação artística e produtiva, não precisando necessariamente de grandes recursos, o que consequentemente propicia ao filme de curta duração a possibilidade de ser um grande laboratório de pesquisa e experimentação de linguagens e poéticas. 

Sem dúvida, este formato, principalmente com o advento do digital, é uma espécie de espaço privilegiado para se perceber o que pode ser o futuro do Cinema, seja no surgimento de novas possibilidades de linguagem, de produção e principalmente de novos cineastas. 

Paralelamente, com o surgimento de oficinas e cursos livres de cinema digital, alguns deles em territórios descentralizados durante a última década, principalmente na cidade de São Paulo, é possível perceber um aumento significativo de cineastas periféricos e com narrativas para além das até então difundidas pelo cinema hegemônico. 

Novos corpos e novas perspectivas periféricas desvelaram-se simultaneamente às lutas identitárias, sejam de pretos, mulheres, indígenas e LGBTQIA+ entre outros. Inevitavelmente a produção audiovisual recente se insere nesta perspectiva, principalmente o curta-metragem, dada a sua acessibilidade.

Sendo assim, ao seguir o caminhar do cinema através dos filmes curta-metragem que vem se destacando nos últimos anos, podemos entender e refletir sobre o cinema, e sobretudo a sociedade contemporânea. 

E agora neste momento de pandemia e desmonte de instituições e políticas públicas audiovisuais em que o cinema tem sido drasticamente afetado, paradoxalmente, graças a uma série de Mostras e Festivais de Cinema realizadas de forma online, é possível ver de casa o que há de melhor do universo dos curtas-metragens enquanto propostas e respiros de outros possíveis cinemas na iminência de um futuro incerto. 

Neste contexto tão atípico, portanto, é possível ver “Peripatético”, curta-metragem de ficção vencedor de diversos prêmios na época de seu lançamento, incluindo o Festival de Brasília em 2018.  “Peripatético” de alguma forma é um exemplo bastante relevante das colocações acima, apresentando um cinema contra hegemônico, dirigido por Jéssica Queiroz, uma mulher preta e periférica, gravado na Zona Leste de São Paulo com personagens diretamente conectados a este lugar de fala. Um olhar desatento poderia deixar passar a relevância e transgressão disto, pois, se antes a periferia era retratada sempre pelo olhar de um diretor homem heteronormativo branco de classe média, aqui se abre uma fresta para um novo ponto de vista, de baixo para cima e de dentro para fora.

O resultado é um filme bastante vigoroso ao retratar temas já bastante abordados nas artes e no cinema em outros momento, como a passagem da adolescência para a vida adulta, o mundo do trabalho, as desigualdades sociais e o racismo. 

Entretanto, Jéssica Queiroz propõe um outro imaginário sobre a periferia, colocando em xeque o clichê da periferia suja, violenta, de tons ora azulados ora pastéis, com faces cheias de dor, sofrimento e melodrama. “Peripatético”, ao contar a história de três jovens amigos moradores da periferia e seus planos e medos para o futuro, apresenta uma periferia pop com uma fotografia iluminada e cheia de cor, com diálogos cheios de referências a animes japoneses, “Ilha das Flores”, banalidades e reflexões existenciais, tudo ritmado por uma edição bastante dinâmica, porém, sem deixar de lado temas como a violência, a desigualdade social e o racismo, o que muda é a maneira como isto é tratado. 

Há uma inventividade lúdica no filme que surpreende a cada cena, desde graffitis animados em diálogo com os pensamentos em voice over da personagem sobre o trabalho, a explicação da meritocracia mostrando nadadores e não nadadores em uma piscina competindo e a cena da abordagem policial violenta encenada por crianças brincando de polícia e ladrão. Jéssica consegue em suas alegorias, mesmo não explicitando a violência e o sofrimento, potencializar imagens carregadas de crítica e afeto que transbordam um “real” que encontra identificação instantânea com quem também vive em regiões periféricas, coisa que filmes como “Cidade de Deus” e “Tropa de Elite”, por exemplo, não atingem nem de longe. 

“Peripatético” não é o primeiro e nem o único filme que traz estas questões, mas é um dos mais relevantes ao trazer um frescor narrativo em contrafluxo do até então cinema tradicional (branco de classe média) produzido até aqui, sem deixar de ser popular e muito menos de ignorar as questões que atravessam seu contexto. 

Se no filme, no qual jovens entram na fase adulta cheio de incertezas, o cinema brasileiro em crise entra também em uma nova fase. Creio que uma saída possível é caminhar junto com essa nova geração, observando-os e (re) aprendendo com elas e eles, e assim, será possível amadurecermos enquanto cinema e sociedade.

Sobre o filme: 

Peripatético (2017)

Sinopse: Simone, Thiana e Michel são jovens moradores da periferia de São Paulo. Simone procura o primeiro emprego, Thiana tenta passar no vestibular de medicina e Michel ainda não sabe o que fazer. Em meio às demandas do início da fase adulta, um acontecimento histórico em maio de 2006 na cidade de São Paulo muda o rumo de suas vidas para sempre.

Brasil (SP) | 15 min. | Ficção | 12 anos

Direção: Jessica Queiroz

Roteiro: Ananda Radhika Meron

Produção: Bia Medina, Nayana Ferreira

Fotografia: Luiz Augusto Moura

Direção de Arte: Dicezar Leandro

Animação: Ananda Radhika Meron, Renato Pereira Sousa

Montagem: Ana Julia Travia

O filme pode ser visto no link: https://www.itaucultural.org.br/secoes/videos/peripatetico-mostra-projecoes-cinema-brasileiro-contemporaneo-2 disponível até o dia 19/10/2020. Ou neste outro link (SescTv): https://sesctv.org.br/programas-e-series/curtas-juventudes/?mediaId=253f65d33ea37cab831d0650bcee3dff 
Mais informações sobre a mostra em https://www.itaucultural.org.br/mostra-online-apresenta-producoes-cinema-brasileiro


André Okuma é mestre em História da Arte pela UNIFESP, faz filmes independentes, é arte-educador e mora em Guarulhos-SP

Mais do autor:

https://jornalistaslivres.org/perifericu-no-centro-do-cinema-brasileiro/

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