O ano em TV: As 15 melhores séries de 2020

As 15 melhores séries de 2020
Em ordem de leitura: Boca a Boca, The Good Place, We Are Who We Are e I May Destroy You

Talvez a gente não esteja mais na “Era de Ouro” da TV, mas 2020 demonstrou que ver séries se tornou um passatempo e uma nutrição cultural essencial para a rotina contemporânea, de uma forma que era meio impossível de imaginar algum tempo atrás. Presos em casa, vimos mais TV, e falamos mais de TV, do que nunca.

Sorte que, mesmo com as filmagens paradas em Hollywood e no mundo por boa parte do ano, as emissoras e streamings mostraram que tinham munição guardada, e entregaram um dos anos mais ousados da história da TV. A lista abaixo reflete isso: são produções que brilharam por misturar tons, viajar por terrenos inexplorados, provar que existe excelência onde menos se espera.

Aqui, escolhemos as 15 melhores séries de 2020, e ainda elencamos 15 atuações que nos prenderam, não importa o tamanho da tela em que apareceram.

As 15 melhores séries de 2020

15. Cherish the Day (1ª temporada)

Um romance honesto, que nunca foge do melodrama (pelo contrário, sabe transitar nele com maestria), “Cherish the Day” acompanha dias fundamentais no relacionamento de Gently (Xosha Roquemore) e Evan (Alano Miller) – cada episódio é de fato concentrado em 24 horas, criando assim uma temporada que é mais uma coleção de crônicas bem observadas do que uma história contínua. “Cherish the Day” deixa que o espectador complete as lacunas da vivência dos protagonistas, se concentrando em analisar, com olhar clínico, as minúcias que definem os destinos dos dois. Audaciosa, delicada, celebratória e desavergonhadamente romântica, a série é uma confecção irresistível.

14. We Are Who We Are

Luca Guadagnino casa com perfeição o particular com o universal em “We Are Who We Are“, uma ode à natureza absolutamente fluida da geração-Z, mas também um olhar afetuoso para os laços poderosos, em última instância convencionais, que eles criam com suas famílias escolhidas. O estilo improvisacional do cineasta cria uma narrativa que é mais sobre as engrenagens emocionais e cerebrais dos personagens do que sobre um plot bem definido. “We Are Who We Are” abusa da força da fotografia, do cenário idílico italiano e das performances profundamente sentidas de Jack Dylan Grazer e Jordan Kristine Seamón, em um dueto inesquecível, para criar uma obra particularíssima, que só poderia existir na nossa era de TV.

Onde ver: HBO Go

13. Servant (1ª temporada)

Caso tivesse exibido a sua primeira temporada completa em 2020, “Servant” provavelmente não estaria nesta lista. Mas a produção de M. Night Shyamalan para a Apple TV+ lançou apenas os seus três capítulos finais neste ano, e foi justamente neles que a série se converteu no que sempre teve vocação para ser: uma mistura delirantemente kitsch de tragédia psicológica e suspense sobrenatural. Cooptando a elaboração visual enervante que construiu por toda a temporada, “Servant” entregou uma reta final alucinante – o penúltimo episódio, “Jericho”, é todo perturbador, com uma performance “fora da caixinha”, à flor da pele, de Lauren Ambrose; e o finale, “Balloon”, lambuza toda a série em uma camada de misticismo provocante, que deixa o espectador ansioso para ver o que ela pode fazer no segundo ano.

Onde ver: Apple TV+

12. Mrs. America

Retrato inteligente de um momento cultural transformador, “Mrs. America” combina idealismo e admiração por suas personagens ativistas com a consciência, ao olhar para o passado do ponto de vista do presente, de que a segunda onda de feminismo nos EUA pode ter significado muito, mas mudou muito pouco. A criação de Dahvi Waller é um raio-X preciso de um movimento político formidável que se encontrou com uma força de resistência à transformação ainda insuperável – e, sim, é uma obra de quebrar o coração, mas também um resgate valoroso dos nomes, rostos e vivências que se desenvolveram nesse crepúsculo entre liberação e opressão, que causava e ainda causa todo tipo de violação e limitação para mulheres ao redor do mundo.

Onde ver: Fox Play

11. Boca a Boca (1ª temporada)

É impossível não pensar em “Boca a Boca” como um pedaço profético de ficção em 2020. Esmir Filho concebeu e filmou, afinal, uma história sobre uma doença misteriosa que se espalha por uma cidade do interior do Brasil através do contato físico (mais especificamente, do beijo). Da reação da comunidade médica ao clima de medo (justificado) que se cria na cidade, “Boca a Boca” parece ter sido escrita por alguém com uma bola de cristal. Mas Filho e cia. também querem falar de algo mais profundo, mais atemporal: conflito de gerações. “Boca a Boca” é, no fundo, sobre como adultos patologizam os comportamentos que não compreendem nos jovens, e sobre como esse ciclo de isolamento e agressão só pode ser quebrado com um resgate do amor incondicional que está no coração do conceito (pretendido) de família. É um soco no estômago em forma de TV, que merece ser sentido para além dos paralelos com a pandemia.

Onde ver: Netflix

10. Evil (1ª temporada)

Outra produção que exibiu apenas os episódios finais de sua temporada em 2020, “Evil” deixou de ser um procedural cheio de promessa e audácia tonal para abraçar as próprias metáforas, e a própria loucura, nos três capítulos de 2020. “Justice x2” (1×12), especificamente, aplica viradas de trama de cair o queixo com a sensibilidade, e a pura alegria, que só pode vir de um contador de histórias realmente apaixonado pela própria criação. Já o finale, “Book 27”, mostra que os criadores Robert e Michelle King têm ambições épicas com “Evil”, deixando brilhar, através das frestas da trama sólida da temporada, um conto de moralidade ambígua e desafiadora. Um pouco como “Servant”, “Evil” mostrou que está disposto a “puxar o próprio envelope” – e se transformou em um dos maiores deleites do ano pelo caminho.

Onde ver: Globoplay

9. The Good Lord Bird

The Good Lord Bird” é um ato de equilibrismo dos mais perigosos: aborda a luta contra a escravidão nos EUA a partir da história de um abolicionista branco, com um tom que passeia por matizes cômicas, dramáticas e ultraviolentas, e quer destacar tanto a nobreza quanto a banalidade do dia-a-dia de qualquer empreitada ativista. Mas, com a ajuda de uma equipe tremendamente diversa, um protagonista negro (o jovem Joshua Caleb Johnson, ótimo) e uma visão cristalina da luta eterna por liberação, a minissérie consegue arrancar as doses certas de risadas, lágrimas e mobilização social do espectador. Sem contar que “Last Words”, um finale simultaneamente, irresistivelmente trágico e triunfal, fecha esse empreendimento absurdo com uma nota para lá de graciosa.

8. Billions (5ª temporada)

A eloquência absoluta de “Billions“, e sua familiaridade evidente com os personagens e o mundo que criou, fazem com que ela só saiba ficar melhor com o tempo. Na quinta temporada (encurtada, e nem preciso dizer o motivo), os criadores Brian Koppelman e David Levien desfilam o texto mais saboroso da TV e abusam de um elenco que costura por ele com habilidade e inteligência emocional de gigantes. Talvez a série mais fascinantemente adulta no ar atualmente, “Billions” é capaz de falar sério (sobre ganância, codependência, o significado de poder no século XXI) e de colocar o seu protagonista de meia-idade para citar uma letra de Billie Eilish para os seus estagiários mais jovens – tudo no mesmo episódio. Impossível não se apaixonar.

Onde ver: Netflix

7. The Good Place (4ª temporada)

A viagem metafísica e filosófica de “The Good Place” terminou em quatro episódios extraordinariamente emocionais em 2020, mostrando que é possível finalizar uma série no momento em que sua história precisa acabar, mesmo nessa era de minisséries “renovadas” e adaptações que vão além dos livros originais. Michael Schur, que dirigiu e escreveu o finale (“When You’re Ready”) com sensibilidade notável, trouxe a sua narrativa cheia de surpresas para um final terno e significativo, sem grandes arroubos narrativos para além de completar os arcos dos personagens e prover um último olhar para as relações que eles construíram. Preocupada com a jornada de moralidade dos seres humanos, “The Good Place” terminou dizendo, tanto na sua história quanto na escolha do momento em que decidiu sair do ar, que nem a eternidade tem sentido sem um ponto final.

Onde ver: Netflix

6. Devs

A temática do livre arbítrio é solo fértil para a ficção científica desde a sua criação como gênero narrativo – e, mesmo assim, “Devs” encontra contemporaneidade em sua própria análise do tema. Criada pelo sempre inteligentíssimo Alex Garland (“Ex Machina”), a minissérie transita por preocupações modernas sobre identidade, preocupações atemporais sobre até onde as pessoas são capazes de ir por amor, preocupações futuristas sobre como manter a autonomia em um mundo de escolhas pré-definidas. O clima de contemplação filosófica, por vezes até poética, domina a direção do próprio Garland, que cria uma experiência única na história recente da TV, mas nem por isso aliena o espectador investido na história dos personagens, interpretados por um elenco comprometido com a jornada emocional de uma história enormemente consequente para a nossa própria concepção de humanidade.

Onde ver: Fox Play

5. I May Destroy You

Mesmo com a profusão de obras audaciosas e fascinantes que exploram a questão do abuso e da recuperação que temos visto recentemente, ainda faltava uma “I May Destroy You” nessa discussão. Michaela Coel entrega uma série profundamente pessoal, mas também extraordinariamente inclusiva de experiências que não são a dela – e, com isso, faz de sua nova criação um panorama completo, provocativo, destemido da questão do consentimento no mundo contemporâneo. O espectador deve sair de “I May Destroy You” com mais perguntas do que respostas, visto que Coel estrutura os seus personagens e suas jornadas para instigar reflexões sobre as intersecções e complexidades da vida sexual no século XXI, mas a série é também moralmente irrepreensível (sempre se colocando do lado “certo”), tecnicamente prodigiosa, extraordinariamente inteligente, emocionalmente satisfatória. Uma obra-prima, enfim.

Onde ver: HBO Go

4. Small Axe

Não faz o menor sentido considerar os episódios de “Small Axe“, antologia (cada capítulo apresenta uma história independente) idealizada por Steve McQueen para a BBC e a Amazon, como filmes. As cinco histórias que McQueen conta aqui se completam para formar um panorama da vivência da comunidade negra caribenha no Reino Unido – um quadro único, que nenhum dos capítulos é capaz de pintar sozinho, e que nenhum dos capítulos foi concebido para pintar sozinho. Essa é uma antologia no sentido mais puro da palavra, e é também a televisão no auge de seus poderes como forma de arte: usa o tempo de investimento que a TV proporciona, e a estrutura episódica, de maneira geniosa, passeando por gêneros e tons para passar a mesma mensagem (o que seria muito difícil no cinema). McQueen cria, em “Small Axe”, experiências distintas que se complementam em um discurso poderoso, uma narrativa sobre as dores e triunfos que a conscientização pode provocar.

3. Vida (3ª temporada)

Decididamente, desavergonhadamente queer e latina, “Vida” foi uma anomalia brilhante na TV enquanto esteve no ar. Suas narrativas, que se preocupavam essencialmente com as discussões que existem dentro do meio LGBTQ+ e dentro da comunidade latina, conversavam diretamente com o público representado na tela, ao invés de fazer concessões de tom, pudor ou trama para o público hétero e o público branco. A criadora Tanya Saracho finalizou o seu pequeno milagre em forma de série de TV na terceira temporada, admitindo que não esperava precisar fechar o ciclo de sua trama tão cedo, mas acertou em cheio ao calibrar a temporada final para empurrar a relação das irmãs Lyn (Melissa Barrera, excelente) e Emma (Mishel Prada) para um ponto de quebra em que elas precisaram escolher, definitivamente, se estavam ao lado uma da outra ou não. “Vida” sempre foi uma história de amor entre elas, e não tinha como terminar de outro jeito.

Onde ver: StarzPlay

2. My Brilliant Friend (2ª temporada)

Adaptar uma obra monumental como a tetralogia napolitana de Elena Ferrante, que compreende tantas complexidades sociais e um ponto de vista psicológico muito forte, não é uma missão fácil. “My Brilliant Friend“, a produção italiana da HBO que ousou tentar, encontrou como sua maior virtude o quanto a direção de Saverio Costanzo (e, em dois episódios desse segundo ano, de Alice Rohrwacher) sublinha sensações e cria imagens indeléveis que traduzem as emoções colocadas em palavras por Ferrante. O segundo ano abrange a transformação das protagonistas em adultas através de períodos turbulentos por motivos diferentes, a matização de seus relacionamentos com as famílias e com colegas de sua mesma geração, contaminadas pelas dificuldades da diferença social e da passagem do tempo. Com um duo de performances à flor da pele de Margheritta Mazzucco e Gaia Girace, ela conjura a magia dos livros e até, por vezes, vai além dela. É um pequeno milagre televisivo.

Onde ver: HBO Go

1. The Chi (3ª temporada)

Nenhum pedaço de televisão pareceu mais seguro em sua excelência do que “The Chi” em 2020. O terceiro ano do drama social criado por Lena Waithe se reestrutura como uma história sobre redenção, inspiração e desbravamento de caminhos que, historicamente, foram bloqueados para as pessoas que ela retrata. Embora a violência e a tragédia ainda sejam fantasmas que pairam pela vida dos protagonistas, às vezes mostrando seus rostos feios em intrusões chocantes, “The Chi” encontra triunfo em sua própria inclusividade – enquanto os encontros e desencontros de um casal lésbico dominam a primeira metade da temporada, a atuação de uma personagem transgênero como figura materna, interesse romântico e agente de transformação por si própria empurra a segunda. Sempre inteligente, mesmo quando se rende à ingenuidade adolescente (com todo o charme que consegue reunir), “The Chi” se impõe como a obra mais completa e fascinante de televisão deste ano.

As atuações

Uma breve nota sobre o nosso ranking de performances: em algumas das posições, escolhemos celebrar duplas (em um caso, um trio) que atuaram juntas em séries de 2020. É um reconhecimento do quanto performances podem se completar em tela, e formar, com as interações entre os atores, um quadro maior e mais interessante do que formariam separadas – além de uma chance de celebrar alguns trabalhos excepcionais a mais.

15. Sonoya Mizuno (Devs)

Eis o círculo vicioso que vivem atores e atrizes não-brancos em Hollywood: sem papéis que os desafiem, eles nunca podem mostrar do que são capazes, e portanto nunca são chamados para papéis que os desafiam. Sonoya Mizuno foi a androide pin-up de “Ex Machina” e uma das amigas de Emma Stone em “La La Land” – mas é só como a Lily de “Devs” que ela mostra as profundidades de expressão das quais é capaz. Passeando por uma série com tom contemplativo e ritmo moroso, ela eletrifica a tela com angústia, revolta, confusão, desespero palpáveis. Quando o finale chega, atinge o espectador o tamanho da realização da atriz: ela construiu uma personagem colossal, instantaneamente icônica, dolorosamente real, que sustenta o pilar mais complicado de uma narrativa difícil de maneira heroica.

Onde ver: Fox Play

14. Naomie Harris (The Third Day)

Jude Law está ótimo nos três primeiros episódios de “The Third Day“, mas é quando a Helen de Naomie Harris entra em cena que a série de Dennis Kelly ganha amplitude emocional, espaço para respirar e se tornar uma história com a qual nos importamos mais do que em um nível intelectual, instintivo. Harris é excelente em expressar, por baixo da superfície, quase em um sussurro, trivialidades que solidificam a personagem (o seu amor pelas filhas, e o desespero por encontrar uma maneira de se conectar a elas) – mas é ainda melhor em desvelar as verdades mais profundas dela, do seu ressentimento e pesar escondidos à força sobrenatural que ela encontra nas belíssimas cenas finais da série.

Onde ver: HBO Go

13. Maya Erskine & Anna Konkle (PEN15)

É impossível desvincular as performances de Maya Erskine e Anna Konkle em “PEN15” uma da outra. Não só as duas são criadoras da série e aparecem juntas na maior parte das cenas, mas também são as únicas integrantes do elenco principal que não têm a mesma idade dos personagens. “PEN15” se apoia totalmente nas formas quase sobrenaturais como elas, hoje aos 30 e poucos anos, invocam o embaraço e ingenuidade da pré-adolescência e os misturam com a sabedoria e as fraturas emocionais da maturidade. Esse truque de magia funciona melhor quando Maya e Anna estão juntas, embora ambas tenham momentos de brilho separadas, e a segunda temporada só fez ampliar o apelo da série e dar tons mais interessantes para suas estrelas interpretarem.

Onde ver: Paramount+

12. Regina Hall (Black Monday)

Caótica como pode ser, “Black Monday” também é muito consciente dos lugares para os quais leva os seus personagens, e o que eles representam – e ninguém encarna essa consciência melhor do que Regina Hall. A sua Dawn é tão frequentemente a pessoa mais inteligente e sã na sala que, quando ela embarca na energia debochada da série em seus momentos mais alucinantes, é um deleite observar como Hall mantém a integridade da personagem e modula as suas entregas cômicas ao mesmo tempo. É preciso força de manejo extraordinária, como intérprete, para acertar nesse tom, e Hall mostra não só que está à altura do desafio, como que pode ensinar algumas lições para a equipe de “Black Monday” sobre como construir uma narrativa de liberação e triunfo não-convencional, mas enormemente eficiente.

11. Yvonne Orji & Issa Rae (Insecure)

Por sua própria estrutura, a quarta temporada de “Insecure” exigiu mais da química entre Yvonne Orji e Issa Rae do que nunca: os episódios, afinal, se organizaram em torno de uma fratura na amizade das personagens, um afastamento que expunha o quanto a relação das duas era baseada nas próprias imaturidades delas, e como uma se apresentava como apoio, contraste, incentivo para a outra superar seus problemas. Desconstruir esse relacionamento tão íntimo, mostrar suas disfuncionalidades, é um trabalho doloroso e revelador, em que as duas atrizes se empenharam com coragem exemplar durante a temporada. “Insecure” nunca foi tão alarmante, como estudo de personagem, do que nessas duas performances absurdamente conscientes de si mesmas.

Onde ver: HBO Go

10. Anna Kendrick (Love Life)

Anna Kendrick é uma das melhores atrizes de sua geração, e só precisa dos papéis certos para provar isso. “Love Life” é um passo na direção correta, dando a ela a oportunidade de respirar dentro da personagem e elaborar uma mistura de identificação universal (nos aspectos de comédia romântica da série) e especificidade dramática. A Darby de Kendrick pode ter a voz, a cadência, a silhueta da atriz, e até aspectos discursivos de sua persona em outros projetos, mas é uma mulher totalmente diferente: suas inseguranças explodindo em tela, levadas a consequências dolorosas que nunca são realmente exploradas em outros filmes e séries do gênero. A atriz passeia por essa subversão de narrativa de maneira geniosa e desembaraçada, demonstrando que não arranhamos nem a superfície da potência dramática da qual ela é capaz. Espero que possamos mergulhar mais fundo no futuro.

9. Maeve Press, Josh Thomas & Kayla Cromer (Everything’s Gonna Be Okay)

Apesar de ser uma criação de Josh Thomas, e ter muito em comum com a série que o revelou na Austrália, “Please Like Me”, “Everything’s Gonna Be Okay” é essencialmente uma adaptação da sensibilidade única do artista para o ambiente da TV norte-americana, e uma adaptação na qual Thomas “só” escreveu diretamente metade dos episódios. É um terreno espinhoso – e, se não fosse pelo trio protagonista, “Everything” poderia ter se arranhado muito mais pelo caminho dessa primeira temporada. Maeve Press, Josh Thomas e especialmente a brilhante Kayla Cromer (provando, de uma vez por todas, que não é por falta de grandes atores autistas que não os vemos nas telas) equilibram tragédia e comédia com uma veia comum de absurdo, de audácia, de excentricidade. Eles três encarnam o espírito complicado e regozijante do texto de Thomas, que é o que faz as criações dele serem tão extraordinárias, mesmo quando não é Thomas quem está empunhando a caneta.

8. Kristen Bell (The Good Place)

Apesar do seu elenco principal cravejado de performances que seriam a “joia da coroa” de qualquer outra série de comédia, “The Good Place”, talvez sem que a gente nem percebesse, sempre se apoiou muito no brilhantismo de Kristen Bell. No coração do debate filosófico da série, a sua Eleanor era a personagem menos caricatura da trama, e o arco mais claro de transformação (alguns diriam, redenção) que ela pode desenhar. Mas nem por isso ela era uma figura menor no esquema cômico de “The Good Place” – e foram as entregas geniosas da atriz que fizeram de seus bordões e excentricidades alguns dos mais icônicos da série. A capacidade que Bell demonstrou de jogar dois jogos ao mesmo tempo, de injetar uma personalidade complexa e vibrante a uma personagem que poderia ser só os nossos “olhos” na trama, elevou “The Good Place” para além de um debate existencial com algumas boas piadas – por causa dela, a série teve coração.

Onde ver: Netflix

7. Sally Field (Dispatches From Elsewhere)

Como atriz, a maior qualidade de Sally Field sempre foi a sua capacidade aparentemente ilimitada de, através da câmera, se relacionar e se comunicar com o espectador de uma forma que parte do íntimo para o épico em um voo sem escalas. “Dispatches From Elsewhere” é o projeto que melhor minou essa capacidade única em anos, entregando a Field a responsabilidade de ser os pés no chão, a solidez, de uma coleção de personagens engajados em jornadas carregadas de realismo mágico e dilemas contemporâneos. A sua Janice é, essencialmente, uma mulher tentando encontrar um propósito após se ver desamparada daquele que seguiu por décadas de sua vida – um dilema que parece banal, mas que Field eleva a uma complexidade expressiva notável, enternecendo-se com o espectador e provocando admiração na mesma tacada. É muito bom ver uma mestre em seu ofício encontrar uma personagem que a merece.

Onde ver: Amazon Prime Video

6. Xosha Roquemore (Cherish the Day)

Embora “Cherish the Day” seja a história de amor de Gently e Evan, a personagem criada por Xosha Roquemore é a que parece transcender o melodrama (muito habilidoso) da série para existir em um plano mais real, palpável. A medida do talento de um ator, em muitos momentos, é o quanto ele consegue expressar o que não está no texto, o que é apenas sugerido pelo texto, e Roquemore estende a sua Gently para muito além das crônicas românticas da obra criada por AvaDuVernay. Aqui, ela é um amálgama fascinante de traumas e potenciais, inseguranças e desafios, que consegue articular o romance da trama sem nunca abdicar de sua personalidade e independência – e, quando a série exige que ela abdique, mesmo que por um breve momento, mostrando com clareza o que faz Gently se sentir tão sufocada nessa situação.

5. Michaela Coel (I May Destroy You)

Por toda a segurança e importância de seu texto e de sua elaboração visual, “I May Destroy You” dificilmente funcionaria sem Michaela Coel na frente das câmeras. Como Arabella, uma ficcionalização potente da sua persona e experiências verdadeiras, a atriz oscila alucinantemente entre posturas e sentimentos contrastantes, se posicionando em cena com o mesmo espírito destemido que demonstra na escrita, colocando o corpo como o principal meio de expressão da jornada radical de sensações pela qual a personagem passa. Durante os 12 capítulos de “I May Destroy You”, Coel está sempre integralmente presente em cena. Nada em sua performance é feito pela metade, construindo uma mulher de ira, misericórdia, confusão, maturidade, honestidade viscerais, dessas que raramente vemos nas telas, e que precisamos ver muito mais.

Onde ver: HBO Go

4. Sarah Paulson & Cate Blanchett (Mrs. America)

Apesar de todos os ícones feministas que coloca em cena (com intérpretes mais do que capazes para encarná-los), nada em “Mrs. America” é mais fascinante do que as mulheres do outro lado da luta pela igualdade entre os sexos. Falo especialmente do dueto entre Sarah Paulson e Cate Blanchett – a primeira em um arco de descobrimento expressado com sensibilidade única; e a segunda em uma projeção de poder pretendido, nunca alcançado, que é tão enervante quanto é, em última instância, triste por si mesmo. Embora os seus momentos de maior brilho aconteçam separadamente (para Blanchett, na dicotomia conservadora exposta em “Jill”; para Paulson, na jornada sensitiva de “Houston”), é nos encontros de uma com a outra que as personagens, e as atrizes, desenvolvem as bases e explicitam as continuações de seus arcos. Parceiras já de outros projetos (“Carol”, “Oito Mulheres”), Blanchett e Paulson mostram que são uma combinação vitoriosa para qualquer obra de TV ou cinema.

Onde ver: Fox Play

3. Ben Mendelsohn (The Outsider)

Uma vez, vi um crítico (do site AVClub) descrever a performance de um ator dessa forma: “é atuação como terraformação”. Ele estava falando de Mark Rylance, protagonista da minissérie “Wolf Hall”, mas eu acho que o que Ben Mendelsohn faz em boa parte de sua carreira, e na recente “The Outsider“, também merece esta denominação. Como o atormentado detetive que, pouco depois de perder o filho, tenta resolver o estranho e brutal assassinato de um garoto em sua cidade, Mendelsohn construiu um herói nada convencional. Sua “terraformação” (que, aliás, é o processo – até agora hipotético – de mudar as condições de um planeta para suportar vida humana) é a de injetar a ameaça de violência e niilismo ao “mocinho” de uma história que, por natureza, questiona as crenças e naturezas de cada uma de suas criações. No centro de uma série sobre monstros, Mendelsohn nunca deixa que duvidemos das intenções do protagonista, de sua humanidade, mas nos mantém nas pontas dos pés quanto ao seu destino até os últimos segundos.

Onde ver: HBO Go

2. Camila Morgado & Eduardo Moscóvis (Bom Dia, Verônica)

Contundente e catártica em seu decididamente sombrio, imperdoável retrato da violência contra a mulher e o descaso institucional do Estado brasileiro, “Bom Dia, Verônica” encontra o seu ponto alto de tensão no dueto entre Camila Morgado e Eduardo Moscóvis, em performances extenuantemente intensas que se completam em cena. Ela, à flor da pele, externa o estado de medo e paranoia constante em que vive a vítima de violência doméstica, fazendo o espectador sentir o enfraquecimento da autoestima e a dificuldade de Janete em procurar autonomia de uma forma que não abale tanto a noção que tem de si mesma e de sua vida doméstica quanto a sua segurança física; ele, por outro lado, encarna um Brandão fisicamente imponente, mas que insinua o seu controle psicológico sobre a mulher de maneiras muito mais delicadas, um instantâneo da malevolência, mas também da essencial trivialidade, do abuso na nossa sociedade.

Onde ver: Netflix

1. Gaia Girace (My Brilliant Friend)

Lila Cerullo é uma figura gigante nos livros de Elena Ferrante. A “Amiga Genial” do título do primeiro livro (embora isso seja virado de ponta-cabeça, brilhantemente, depois), ela é quase uma figura mítica aos olhos de Lenú e dos que vivem ao redor das duas em Nápoles. Vê-la demonstrar fraqueza, esquecer sonhos, rever conceitos e manter viva por muito pouco a chama de sua intelectualidade e consciência social extraordinárias, quase divinas, é um choque nesta segunda temporada, como foi no segundo volume da saga literária. Sorte que, encarando esse titã de personagem, a jovem Gaia Girace demonstre tanta audácia, tanta sensibilidade, tanta capacidade de ampliar o universo oceânico de Lila ainda mais aos olhos do espectador. Sua performance nunca é histriônica, ou melodramática, apesar das provações cada vez mais intensas pelas quais a personagem passa – ao invés disso, ela é medida e integral em cena, certificando que consigamos ver a faísca por trás dos seus olhos mesmo quando Lila está esmagada pelo peso da própria vida. Se ela é gigante nos livros, na TV, graças a Girace, ela é dez vezes maior.

Onde ver: HBO Go

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