Arquivamento do relatório final CPI da Covid sequer demandará justificativa

Apesar dos esforços da Comissão Parlamentar de Inquérito, das falcatruas do desgoverno que foram reveladas e da cobertura “pollyânica” dos trabalhos, crimes apontados no texto final podem ser engavetados por Lira e Aras, sem necessidade de fundamentação

Por Homero Gottardello, jornalista e advogado

O Brasil nunca foi, não é e, definitivamente, jamais será um país para amadores, para aprendizes ou leigos. É por esta e não outra razão que o racha no “alto comando” da CPI da Covid deve ser observado, quando no muito, com desassombro. Até porque, basta ter dois neurônios e o mínimo de conhecimento histórico para inferir que, por trás dos discursos acalorados e da forma detalhista com que o inquérito parlamentar desemaranha o novelo da corrupção, durante o nosso mais trágico capítulo republicano, há um enorme interesse eleitoral. E o que, agora, cria uma fissura entre o relator, Renan Calheiros (MDB/AL), e o grupo mais influente da comissão não é, exatamente, uma questão jurídica, mas o oportunismo.

Denominado pelo colunismo como “G7 Ampliado”, o time que reúne senadores, suplentes e “corneteiros” condenou o vazamento de trechos do relatório, antes que o texto final fosse acertado entre eles e Calheiros. Como se sabe, “não existe almoço grátis” e, neste caso, a briga não é para saber quem vai pagar mais ou menos da fatura, mas quem terá direito a comer mais do que os outros. Em outras palavras, quem irá capitalizar politicamente a investigação, alavancando suas pretensões pelas mãos dos meios de comunicação e, principalmente, pela mídia hegemônica, há exatamente um ano das eleições de 2022.

Fato é que o “subjornalismo” brasileiro é repleto de Pollyanas. Para quem não conhece ou não se lembra, Pollyana é uma personagem da literatura infanto-juvenil, uma menina de 11 anos que ensina o “jogo do contente”, que nada mais é do o exercício retórico de enxergar algo positivo em tudo, desde as experiências mais detestáveis aos episódios mais traumáticos da vida. A falta de conhecimento jurídico por parte dos jornalistas, de uma base constitucional, faz com que o noticiário político se equilibre sobre cascas de banana, gerando uma expectativa nos leitores que, habitualmente, é convertida em grande decepção. E isso, num estalar de dedos.

É que essa insciência, esse desconhecimento, essa incompreensão do ordenamento legal, da estrutura de poder, faz com que a imprensa tenha a mesma visão de mundo de Pollyana, esperando que a bem-aventurança, a justiça social, a reforma agrária ou a distribuição de renda venham, milagrosamente, do arbítrio de um presidente da Câmara dos Deputados ou do Senado. É uma visão imatura, um sonho meninil. E Renan Calheiros, o chamado “G7 Ampliado” e até mesmo os ascensoristas dos elevadores do Congresso sabem muito bem como manipular esse “subjornalismo”, extraindo da sua criancice o palanque de que precisam, de tempos em tempos, para se reelegerem.

A análise acriançada da grande mídia e até mesmo de nós, que ocupamos uma posição de resistência nos meios de comunicação, não consegue enxergar as entrelinhas dos regulamentos internos, as portarias e os códigos que garantem ao Congresso um poder imperial, para não dizer absoluto. É por isso que, até agora, enquanto se comemora os desanques e desmascaramentos da CPI da Covid, ninguém escreveu uma linha, não disse uma palavra sequer do destino que o relatório da Comissão Parlamentar de Inquérito terá, assim que chegar às mãos do presidente da Câmara, Arthur Lira (PP/AL): a gaveta.

Quando isso ocorrer – e é bom o leitor anotar aí, para me cobrar, posteriormente – todos ficarão com a cara de tacho de sempre, se perguntando porque, depois de tantas audiências, de tantas sessões, quebras de sigilo, buscas e apreensões, o relatório não deu em nada. Os brasileiros experimentarão, pela enésima vez, aquele abalo da impunidade, aquele espanto com a falta de punição para quem cometeu tantos e claríssimos crimes. Na semana que vem, conheceremos um parecer com mais de mil páginas tratando, de forma clara e irretorquível, da responsabilidade do presidente da República por omissão, corrupção e/ou prevaricação nas mortes de quase 650 mil pessoas. Tudo explicadinho, tintim por tintim. E para quê?!?

O caminho até a gaveta

Este relatório seguirá um caminho: será apresentado para o presidente da Câmara e ao Procurador Geral da República, Augusto Aras. Tanto Aras quanto Lira têm poderes arbitrários, incontestes e, o que é pior, únicos, que dão a ambos a possibilidade de, simplesmente, não receberem o relatório. Note que, em Direito, receber não significa apenas ganhar e aceitar uma coisa, mas conhecê-la, admiti-la, autorizá-la e, o mais importante, denunciar criminalmente aqueles apontados no inquérito.

Antes de prosseguir no caminho, é preciso pontuar um “detalhe”, que foi propositalmente esquecido, lá atrás, no início dos trabalhos da CPI da Covid. Falo de uma mudança legislativa que poderia ter destituído, mesmo que parcialmente, tanto o presidente da Câmara, como o Procurador Geral, deste absolutismo à brasileira. Não seria nada tão difícil quanto pode parecer, afinal, se uma “Lei nº X” tivesse sido proposta, ela já estaria “valendo” e a coisa funcionaria assim: Aras, por exemplo, não seria compelido a aceitar o relatório da CPI da Covid, mas poderia ao menos ser obrigado a, em um prazo de dez ou 15 dias, arquivá-lo fundamentadamente. Ou seja, o Procurador da República teria, a partir desta alteração legal, que explicar a razão de não estar conhecendo do relatório.

Para o leigo, parece que isso não mudaria tanto as coisas, já que a gaveta continuaria como destino final do relatório. Mas mudaria, sim. Mudaria tudo, já que, nesta circunstância, o relatório declinado pelo Procurador da República seguiria por remessa a um grupo de subprocuradores que poderiam atestar – ou não – a existência do(s) crime(s) apontado(s). A explicação está neste “detalhe” que escapa aos olhos do sensacionalismo, do partidarismo, da precariedade humana e de objeto do “subjornalismo”: hoje, a decisão de conhecer ou determinar o arquivamento do relatório da CPI, sepultando qualquer possibilidade de impeachment, cabe, única e exclusivamente, ao presidente da Câmara dos Deputados que, optando pelo engavetamento, não se obriga nem sequer a fundamentar sua decisão.

Ora, a CPI da Covid se estendeu por meses, consumiu muito do dinheiro público, criou um verdadeiro circo midiático, despertou paixões nos brasileiros e, de repente, seu relatório chega nas mãos do Procurador da República e é, imperialmente, desprezado. A mesmíssima lógica da fundamentação ainda poderia se aplicar ao presidente da Câmara dos Deputados, evitando que a Comissão Parlamentar de Inquérito, que tanto representa a vontade política da população, se transforme em um nada jurídico. Mas esta simples alteração legislativa teria que ter sido proposta, votada e aprovada, repito, lá atrás. Todos os parlamentares que comandaram a CPI tinham e têm plena ciência disso, desde o início dos trabalhos, mas não moveram uma palha no sentido de fazer valer seu relatório final, por conveniência, por desídia.

O leitor deve estar pensando que cometo, aqui, um gravíssimo erro, que as “coisas mudaram”, que existem ouvidoria e corregedorias prontas para salvar a Nação de um absurdo como este, prontas para quebrarem o establishment. Enfim, pode pensar que sou um burro, um idiota falando do que não entendo. Bom, eu gostaria de estar errado e o leitor, certo, mas o primeiro sinal de que não sairemos do vácuo e que, a partir de agora, veremos disputas internas pela paternidade do relatório final e pelos louros eleitorais de sua autoria, já está dado…

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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