Por Verônica Lima, vereadora de Niterói/RJ
Os séculos de misoginia que mancham a história da cultura ocidental deixaram uma poça de sangue no chão de um shopping em Niterói nesta quarta-feira. Era o sangue de Vitórya Melissa, uma mulher de apenas 22 anos, punida a golpes de faca por ousar não corresponder às expectativas de um homem que dizia amá-la. A jovem, que tinha o sonho de ser enfermeira, nasceu e morreu na cidade em que cresci, onde vi as barbaridades das quais o machismo é capaz.
O caso de Vitórya não é incomum, especialmente na pandemia. Assim como as vítimas da Covid-19, as mulheres assassinadas durante o período de confinamento no Brasil são cada vez mais numerosas. Como O Globo mostrou nesta quinta-feira, o primeiro quadrimestre deste ano teve o maior total de vítimas de feminicídio no Rio de Janeiro desde o início da série histórica do crime, em 2017, segundo o Instituto de Segurança Pública (ISP). Foram 30 casos, contra 20 no ano passado.
Mas é preciso vigiar para que os rostos dessas mulheres não se apaguem na frigidez das estatísticas. No mês passado, Rosane Guimarães, de 21 anos, foi morta a tiros em Belford Roxo. Horas depois, a 30 quilômetros de distância, Ana Carolina Sá Vieira, de 15 anos, foi assassinada a pauladas em Tomás Coelho, na capital, pelo ex-namorado, segundo relatos de testemunhas. Essas histórias mostram o tamanho da ameaça que a sociedade criou para suas mulheres, bem como o risco que, no limite, a possibilidade de envolver-se sexual ou afetivamente com um homem representa para uma mulher.
Durante décadas, esse tipo de crime foi caracterizado principalmente como “crime passional”, uma nomenclatura defasada e perigosa. Defasada porque, além de não constar no Código Penal, contraria o entendimento firmado por pesquisadores de Segurança Pública, ocultando a razão primordial de tantos assassinatos: a normalização da violência doméstica. Perigosa porque isola cada caso do problema estrutural a que todos eles estão ligados e, assim, dá margem à romantização da figura do assassino, justificada por uma suposta paixão incontrolável. Um “amor” que, paradoxalmente, tolera e contempla a morte de uma mulher. Afinal, esses homens receberam ainda na infância a lição de que não ser amado ou desejado é uma derrota, uma desonra, e de que não há exageros possíveis quando o objetivo é evitá-la.
Por isso, como toda vítima da tragédia sanitária que se abate sobre o país neste momento, cada mulher que morreu enredada na trama cruel do machismo é uma morte a mais na conta do Estado, que falhou não só no amparo a mulheres em situação de vulnerabilidade, mas também — e sobretudo — do ponto de vista socioeducativo.
Quantas outras Vitóryas precisam morrer para tomarmos consciência da gravidade e do tamanho do problema que temos pela frente? Um passo importante foi a sanção da Lei do Feminicídio, em 2015, por Dilma Rousseff, mas isso não basta. Em Niterói, a Câmara Municipal aprovou, em duas votações, o Programa de Combate ao Feminicídio, de minha autoria. O projeto, que deve ser sancionado em breve, prevê assistência articulada e integral às vítimas de violência, mapeamento de casos junto a instituições de ensino e prevenção com redes de apoio. Iniciativas certeiras, mas ainda limitadas se comparadas à mobilização que podemos — ou melhor, devemos — ter.
Verônica Lima é autora do Programa de Enfrentamento ao Feminicídio de Niterói e foi a primeira mulher negra eleita vereadora da cidade.