Alícia no país dos milagres – 1º ato, visita a Catedral do Avivamento

Parcela considerável da Praça da República ainda nem tinha dormido quando cruzei a feirinha sendo armada rumo à estação por volta das quinze pras sete. Duas vezes maior e já bem desperta, a outra se amontoava em frente às portas dos vagões. “Sua sorte é que cê tá chegando na Sé e não saindo”. Quase meia hora pra conseguir retirar meu bilhete no guichê após duas tentativas frustradas (todas as máquinas da Rapidão estavam em manutenção na SalaNet, aonde fui reencaminhado ao comunicar o fato), mais dois cigarros na plataforma e enfim pude recostar o banco e dormir as cinco horas de viagem até Ribeirão. Mais outra por vir, cinquenta quilômetros região metropolitana afora.

     Destino final: Orlândia, terra de Eugênio Bucci e da equipe de futsal campeã da Copa Libertadores em 2013 com Falcão estrelando o elenco, ADC Intelli. Era uma sexta-feira. Dia da tradicional homilia (no caso, pregação) do Pastor Feliciano em sua base partidária e filial da Assembleia de Deus, a Catedral do Avivamento.

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      Missão: passar-me por uma ovelha desgarrada em busca de redenção e, com alguma sorte, ter o prazer de presenciar o espetáculo, quem sabe colher algumas palavras sobre a Maria Madalena da vez: a jovem política em meteórica ascensão, Patrícia Lélis, quem, todos a essa altura estamos carecas de saber, acusa o Deputado Federal Marco Feliciano de agressão e tentativa de estupro.

      Tratei de caprichar no visual: camiseta surrada com estampa do João Bafo-de-Onça a mero título de artifício psicológico vez que por cima a camisa preta riscada estava abotoada até quase a gola, mais pulôver puído da década de 80 (“mano não usa pulôver, usa moletão”) e jaqueta esfarrapada de couro sobre tudo. Até faria sentido no frio daquela manhã na capital, não nos 24o de Orlândia às três da tarde. Tirei a jaqueta. Quatro maços de cigarro na véspera pra amarelar bem os dentes, os dedos. Nada do tradicional corte de unhas do fim de semana, e desde o anterior — sem banho, devidamente imundas por baixo. Escovar a barba crescida de uns meses, tampouco. Um clichê ambulante, alcóolatra, quiçá drogado, mãe outrora católica hoje convertida e preocupada com a alma do filho e o pedaço de nuvem que haveriam de herdar no Reino dos Céus. Calva pontualmente à mostra, duas semanas sem gilete. Esse foi o personagem por mim interpretado. Ou que ao menos tentei interpretar.

      Um porém: acostumados com o jogo de cena, tudo parecia estar preparado pra possível chegada de um forasteiro. Tão logo adentrei o recinto, olhares sobre mim recaíram feito chumbo quente. Fiz o tímido, fitando o chão até tomar meu lugar numa das fileiras de trás, percurso na diagonal em ângulo reto. Do nada, uma Bíblia apareceu na cadeira ao lado. No instante seguinte, o senhor de uns sessenta e poucos anos antes no púlpito surgiu as minhas costas, lá sendo substituído por duas moças (tatuagem de uma tão desbotada quanto o cabelo da outra) castigando os ouvidos dos fiéis em expiação dos pecados cometidos ao longo da semana. “Pode usar a Bíblia se quiser”. De pronto — e letra.

      Minha experiência de parcas eras no Catolicismo (quase coroinha aos onze) foi de extrema, extremíssima serventia na hora de incorporar o santo (obviamente pagão), fechar os olhos, balançar os braços e cantar a plenos pulmões, sob a vista atenta embora furtiva do senhor servil que fazia aparecer Bíblias. Então, o chamado: “Temos hoje um novo irmão presente conosco. De onde o senhor veio?” O pastor interino, ou o vice-pastor interino, vez que o interino parecia ser o Mago das Bíblias, interpelava-me. G-gaguejei um G-goiânia diante da inesperada abordagem, e o vice-pastor interino se pôs a pregar sobre como tinha abandonado uma vida próspera e construída com o próprio suor desde menino pra servir a Deus.

      Todos os envolvidos em suas devidas posições, interpretando seus respectivos personagens, inclusive a “tia das foto” (sentia que meu papel tinha sido roubado). Todos, menos os fiéis. Não havia nada a fotografar ali, senão o forasteiro fazendo sombra a uma dúzia de ovelhas pingadas que, como eu, não escutaram sequer uma vez o nome de Marco Feliciano ser pronunciado – nem um mísero pedido pra que orassem pelo Deputado. Ausente em corpo e espírito. “Pensei que o senhor fosse pastor”, confessou o próprio após uma sabatinada básica ao fim do culto: quem eu era, de onde eu vinha mesmo, o que é que eu estava fazendo ali. Meio gaguejando, genuinamente tenso, fui enrolando o pastor no bico mais por improviso involuntário do que talento pra coisa. O receio do pastor tinha razão de ser: antes lotados na presença de Feliciano, os cultos de sexta-feira andam às moscas. Ao que parece, cada vez mais ovelhas vêm sendo arrebatadas para longe dos campos do Senhor do Avivamento. Como já ouvi dizerem lá pras minhas plagas: é o olho do dono que engorda o rebanho. E foi o capacho do dono, o vice-pastor interino, quem me confirmou: o dono não pisava ali havia dois meses, o que só deveria acontecer dali a outros dois. “Viajando muito por aí”. Coincidentemente, desde quando o caso Patrícia Lélis estourou nos bastidores. “Cê vai ficar mais uns dias na cidade? Aparece no domingo, vai ter culto também”. Decerto que sim, disse o roto ao nu.

      Todos unidos num só Show de Truman, figurinistas a figurantes, tudo tão fake quanto as encenações montadas por cada vez mais pastores quais Feliciano no púlpito ou no Parlamento e pra desgraça dos evangélicos e/ou brasileiros de modo geral.

      Uma vez não sendo mais necessário o disfarce, o pastor crackudo deu lugar ao repórter hipster e, já de Ray-Ban no rosto, parti em busca da residência dos Feliciano. Não precisei andar muito. Nem procurar. “Tem umas palmeiras na frente, costuma ficar cheio de segurança na porta”. Os seguranças, não encontrei. Devem acompanhar o patrãozinho aonde quer que vá. Já as palmeiras e o casarão ocupando metade da quadra destoavam completamente da vizinhança e, no mais, de todo o município de 42 mil habitantes e apenas três edifícios residenciais. Impossível não ver. Quase uma miragem em meio ao deserto do real. Um milagre com a graça de Nosso Senhor Jesus Cristo. Uma locação kafkiana cercada por uma cidade cenográfica por demais coerente, a típica e esperada pasmaceira pastoril de qualquer interior. Onde lobos se criam às custas das peles de cordeiros escalpelados. Afastados, bem afastados dos holofotes das capitais.

Mansão do Pastor Marcos Feliciano em Hortolândia, São Paulo.
Mansão do Pastor Marcos Feliciano em Ortolândia, São Paulo.

      Fosse eu um colega sensacionalista de profissão e: prato cheio. Um banquete. Poderia usar o vídeo do carro importado saindo às pressas da garagem, a esposa perseguida pela imprensa. Poderia ter pressionado a menina de onze ou doze anos que me atendeu à porta na aparente ausência de um adulto ou protagonizando exatamente o que de mim queria o adulto escondido por trás da porta: a chance de inverterem ainda mais os papéis como as vítimas da história. Nem que pra tanto tenham de forçar outra criança a entrar em cena, vítima de berço. Ainda nos oi-como-vai-tem-algum-adulto-aí, no entanto, sem que eu tivesse de perguntar nada além de um “tudo bem?”, a menina acabou soltando: “Já tá tudo bem, deu uma acalmada”. Não insisti. Meia-volta e quatro quilômetros em vão a fim de basicamente contornar a cidade por dentro e voltar à estaca zero só pra bater minha selfie com a placa de boas-vindas a Orlândia na entrada do município.

 

O 2º e imperdível ATO desta novela onírica você vai encontrar AQUI

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