Abolição de Fachada

A abolição não foi acompanhada de nenhuma política pública minimamente capaz de amenizar as consequências maléficas do escravismo. Artigo de Daniel Höfling • Fotografia: Maxwell Vilela
Fotografia: Maxwell Vilela. Ato dem Belo Horizonte dia 13.05.2021



Completamos dia 13 de maio, 133 anos de abolição da escravatura. Assinada em 1888 pela regente do Brasil, princesa Isabel, a Lei Áurea supostamente acabou com a escravidão no país. No entanto, há muito pouco a comemorar. Passado e presente são motivos de vergonha para todos nós.

            A economia do “Mundo Atlântico”, a partir do século XVI, promoveu o tráfico de aproximadamente 10,5 milhões[1] de escravizados nas 51 mil viagens estimadas[2] entre a África e as Américas. Desse total, 46%, ou 4,8 milhões de cativos, vieram para o Brasil. Das pessoas desembarcadas em território nacional entre 1500 e 1850, 86% eram escravos e 14% colonos ou imigrantes. Nós fomos o maior receptor de escravos da história da humanidade e o último país do Novo Mundo a abolir a escravidão. Forjados no escravismo, no extermínio indígena e no patriarcalismo, carregamos até hoje as cicatrizes dessas excrecências. Por séculos o único interesse comum entre as díspares regiões nacionais, que justificou a permanência da monarquia até 1889, foi a manutenção do trabalho escravo. Monarquia e escravidão, duas aberrações, estavam umbilicalmente conectadas.

            Como sabemos, a abolição não foi acompanhada de nenhuma política pública minimamente capaz de amenizar as consequências maléficas do escravismo. Pelo contrário: nesses 133 anos, as estruturas de poder reproduziram e ampliaram a desigualdade multidimensional entre brancos e negros no Brasil. Os números falam por si. De acordo com o 14º Anuário Brasileiro de Segurança Pública, em 15 anos a proporção de negros no sistema carcerário cresceu 14%. Em 2005, haviam 62.574 presos brancos (39,8% do total) e 91.843 presos negros (58,4% do total); em 2019, eram 212.444 detentos brancos (32,3% do total) e 438.719 detentos negros (66,7% do total). Dados do Atlas da Violência, 2020, do IPEA, revelam que um negro no Brasil tem quase três vezes mais chances de ser assassinado do que um branco; entre 2008 e 2018, os assassinatos de negros aumentaram 11,5% enquanto os de não-negros caíram 12,9%. Em 2018, os negros perfizeram 75,7% das vítimas de homicídios. Ao observamos os mortos pela COVID, a desigualdade racial é novamente explicitada: o estudo Social Inequalities and Covid-19 Mortality in the City of São Paulo revela que a taxa de mortalidade entre os negros é 81% maior que entre os brancos.

Quando cruzamos dados de cor e gênero, as desigualdades se aprofundam ainda mais. Um estudo[3] inédito publicado pelo NPEGen (Núcleo de Pesquisa de Economia e Gênero) da FACAMP (Faculdades de Campinas), intitulado “Mulheres Negras no mercado de trabalho”, revela dados assustadores. De acordo com o estudo: “A comparação entre os grupos revela que as mulheres negras ganharam, em média, apenas 64,5% (equivalente a R$1.617,9) do rendimento médio do Brasil, enquanto os homens negros chegaram a 79,1% (R$1.984,2), as mulheres brancas 112,9% (R$2.832,0) e os homens brancos 143,8% (R$3.608,6). Isso indica que o rendimento médio das mulheres negras representou apenas 44,8% daquele auferido pelos homens brancos… mesmo com ensino superior completo, as mulheres negras apresentaram rendimento médio muito inferior ao dos demais grupos (elas atingiram 126,4% do valor médio para o Brasil, enquanto as mulheres brancas chegam a 185,3%, os homens negros a 195,8% e os homens brancos 284,3%). Em outras palavras, mesmo com ensino superior completo, o rendimento médio dos homens brancos foi equivalente a 2,2 vezes o das mulheres negras”.

Ainda segundo o estudo, no 4º trimestre de 2020 a taxa de desocupação das mulheres negras foi 19,2% enquanto a dos homens brancos foi 9,7% (a de mulheres brancas foi 13,4% e a de homens negros 13,6%). Quando observamos a subocupação, as taxas são 12,4% para mulheres negras e 4,4% para homens brancos. As diferenças mais gritantes aparecem no que os estudiosos do mercado de trabalham denominam “posição na ocupação”. Do total de trabalhadores domésticos informais no Brasil, 62,8% são mulheres negras, 31,3% mulheres brancas, 3,9% homens negros e 2,1% homens brancos. Por outro lado, na categoria “empregadores”, 8,3% são mulheres negras, 21,1% mulheres brancas, 22,7% homens negros e 48% homens brancos.  

Por qualquer ângulo observado, a desigualdade entre negros e brancos é gritante. A tentativa de enterrar esse problema como “coisa do passado” ou “não vamos falar mais nisso” traduz-se na continuidade da discriminação, apartamento e genocídio da população negra. Candelária em 1993 e Jacarezinho em 2021 são provas cabais disso. Não há o que comemorar! Estamos presos em 1800!  


[1] Não incluídos os mortos nas travessias

[2] TSTD (Trans-Atlantic Slave Trade Database, 2006)

[3]https://www.facamp.com.br/pesquisa/economia/npegen/mulheres-negras-no-mercado-de-trabalho/boletim-mulheres-negras-no-mercado-de-trabalho-no-4o-trimestre-de-2020/

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. Otimo artigo! Muito bem fundamentado e com os números todos comprovando como a situação dos negros e das mulheres ainda e muito precária no Brasil!

  2. Gostei muito do artigo. Tema importantíssimo, por razões óbvias não tratado no Brasil.

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