A radicalização da luta de classes no Brasil

Artigo de Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia, com charge de Paulo Batista

 

 

Conforme vamos nos aproximando do dia 7 de outubro, fica cada vez mais óbvio que estamos diante de uma forte polarização. Que polarização é essa? É esta a pergunta que tento responder neste ensaio.

Começo com uma afirmação forte, contundente: Bolsonaro é o candidato dos ricos e Haddad é o candidato dos pobres!

Essa frase, assim, solta no ar, vira alvo fácil de desmentidos. Certamente, o leitor e a leitora estão pensando: “Conheço um monte de gente pobre que vota em Bolsonaro”. Daqui, eu replico: conheço um monte de gente rica que vota no Haddad.

Segundo o TSE, existem hoje no Brasil 140,3 milhões de eleitores aptos a votar. Será mesmo que a minha percepção pessoal, que construo a partir daquilo que ouço da boca do meu vizinho, do meu primo, é o bastante para ter a visão do conjunto do eleitorado brasileiro?

Não, não é!

A análise não pode ficar restrita ao que vemos com nossos próprios olhos e ouvimos com nossos próprios ouvidos. Por isso, os dados estatísticos são tão importantes. São eles que nos permitem ter noção do que está acontecendo para além do horizonte, onde os olhos não alcançam, onde os ouvidos não escutam.

Parto sempre do princípio de que os institutos de pesquisa sérios e confiáveis são o Ibope e o Datafolha, pois na série histórica mais acertaram do que erraram. O Vox Populi também poderia entrar nessa lista, mas, como ele costuma ser próximo de movimentos sociais ligados ao PT, fiquemos apenas com o Ibope a o Datafolha.

Qualquer analista minimamente sério não briga com os dados do Datafolha e do Ibope. Isso é comportamento de eleitor/torcedor. O Ibope apresentou nessa semana dados qualitativos que ajudam a responder às perguntas que me parecem ser as mais importantes de serem feitas no atual momento da corrida eleitoral: quem é o eleitor de Jair Bolsonaro? Quem é o eleitor de Fernando Haddad?

Dos dois lados da fronteira ideológica saltam respostas caricatas que pouco ajudam na compreensão da realidade. À esquerda, fala-se muito em um “fascismo” que teria se espalhado pela sociedade brasileira. À direita dizem que os eleitores do PT são o resultado de uma revolução cultural que o partido vem silenciosamente fazendo no Brasil, especialmente a partir das universidades, onde atuam os “professores doutrinadores de esquerda”.

Para contraditar as caricaturas, aciono os dados divulgados pela pesquisa do Ibope publicada em 24 de setembro de 2018. Os números são cristalinos:

Haddad lidera com 30% das intenções de voto entre os eleitores que vivem com menos de 1 salário mínimo por mês. Bolsonaro tem 16%. Se o corte for o da escolaridade formal, o cenário é bem parecido: entre os eleitores que estudaram até a 4° série do ensino fundamental, Haddad lidera com 28%. Bolsonaro tem 19%.

A situação é oposta quando mudamos o filtro dos dados qualitativos:

Entre eleitores com renda mensal superior a cinco salários mínimos, Bolsonaro lidera com impressionantes 42% dos votos. Haddad tem 15%. Entre eleitores com ensino superior completo, Bolsonaro lidera com 33%. Haddad tem 16%.

As caricaturas de esquerda e de direita não sobrevivem aos dados: o tal “fascismo” não é um projeto da “sociedade brasileira”, mas, sim, dos mais ricos. As universidades não fazem “doutrinação ideológica de esquerda”, pois a parcela mais escolarizada da população (que tende a ser a também a mais rica) prefere Bolsonaro.

É claro que existem as exceções!

16% de pobres votam em Bolsonaro. É muita gente. Alguns deles salpicam aqui e ali nas nossas relações pessoais, o que pode nos levar a um erro de percepção. Nunca é demais lembrar o óbvio: se 16% dos mais pobres votam em Bolsonaro, 84% não votam. 84 é mais que 16, bem mais.

O que os dados qualitativos mostram é que o eleitor típico de Bolsonaro é homem com diploma universitário, branco, proprietário, com renda mensal superior a cinco salários mínimos e com idade situada entre 25 e 40 anos. Podemos chamar esse tipo ideal de eleitor de “Maicon”.

Já o eleitor típico de Haddad é eleitora. É mulher, é preta, com ensino fundamental incompleto e com renda mensal inferior a um salário mínimo. Vamos chamar esse tipo ideal de “Dona Nísia”.

Maicon vota em Bolsonaro e Dona Nísia vota em Haddad.

Agora, podemos avançar na discussão e apresentar outras perguntas: por que Maicon vota em Bolsonaro? Por que Dona Nísia vota em Haddad?

Maicon vota em Bolsonaro, principalmente, porque é proprietário e está assustado com a violência urbana, que nas pesquisas de opinião é apresentada como o segundo maior problema do Brasil, perdendo apenas para a saúde.

Alguns companheiros e companheiras se limitam a colar o rótulo de “fascista” em Maicon. Não me contento com atalhos argumentativos.

A percepção da insegurança é especialmente forte junto aos proprietários, e por um motivo bem óbvio: quem tem propriedade tem mais a perder com a violência urbana.

É claro que há outros elementos que formam a decisão eleitoral de Maicon: moralismo comportamental, machismo, homofobia. Mas o fundamental mesmo é o poder de sedução da utopia autoritária representada por Jair Bolsonaro, que se manifesta na tópica “bandido bom é bandido morto”.

Para Maicon, a imagem do bandido é personificada no homem preto e jovem que lhe assaltou na semana passada. Maicon está convencido de que se Bolsonaro for eleito esse tipo social será exterminado e, com isso, sua propriedade estará protegida.

Já Dona Nísia lembra com clareza o que aconteceu no governo Lula.

Segundo as Nações Unidas, as mulheres chefiam 92% das famílias assistidas pelo Bolsa Família. Entendem, leitor e leitora? 92%! O Bolsa Família significa o empoderamento da mulher pobre. A Dona Nísia sabe disso, e sabe muito bem.

Segundo dados do governo federal, as mulheres são proprietárias de 89% das unidades habitacionais financiadas pelo programa Minha Casa Minha Vida. Aquela mulher pobre, vítima de violência doméstica, que era obrigada a morar com o agressor porque não tinha para onde ir, foi empoderada pelo Minha Casa Minha Vida.

O que podemos tirar disso tudo?

Maicon vota em Bolsonaro movido pela expectativa de que o problema da violência urbana será resolvido por um governo autoritário e violento. Dona Nísia vota em Haddad porque já viveu a experiência do empoderamento, proporcionada pelas políticas públicas desenvolvidas e intensificadas pelos governos petistas. Os dois estão convictos dos seus votos. Não mudarão, não importa o que aconteça.

Sim, leitor e leitora. Sem dúvida, vivemos um ambiente de polarização. Lulismo X Bolsonarismo; Petismo X Antipetismo.

Mas a verdadeira polarização se dá mesmo entre Maicon e Dona Nísia. É conflito racial, é disputa entre gêneros. É, antes de qualquer coisa, luta de classes, a velha luta de classes. Desde sempre, a história humana é a história da luta de classes.

De qual lado vocês estão?

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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