A pós-graduação ainda é um bom negócio no Brasil?

A pós não é ou não pode ser apenas o lugar de formação em série e larga escala de um único tipo de profissional
Reprodução UEMG

Por Wagner Geminiano dos Santos, doutor em História, pesquisador visitante em Ghent University, Bélgica, e professor efetivo da rede municipal de São José da Coroa Grande-PE

No dia 10 de janeiro o jornal NEXO publicou um artigo do professor Olavo Amaral, da UFRJ, intitulado “A pirâmide financeira da carreira acadêmica”. O título, provocativo, contribuiu para potencializar e acalorar ainda mais o debate sobre o papel da formação universitária no país, notadamente em nível de pós-graduação. O texto foi publicado também num momento de transição de governo, quando milhares de bolsistas de mestrado e doutorado se viram ameaçados de terem suas bolsas cortadas ou não depositadas dentro do mês, por conta da falta de planejamento e da absoluta negligência e política de destruição do ensino superior tocada pelo governo anterior.

https://www.nexojornal.com.br/colunistas/2023/A-pir%C3%A2mide-financeira-da-carreira-acad%C3%AAmica

Mas, para além da questão mais urgente das bolsas de pesquisas e seu necessário e urgente pagamento, o artigo de Amaral aponta para uma questão/problema mais estrutural, qual seja: o autor parte da hipótese de que se todos os orientadores de doutorado na pós-graduação brasileira preencherem suas vagas de orientação e continuarem formando doutores em larga escala – segundo o autor, cerca de 20 mil ao ano – o sistema universitário brasileiro não teria espaço suficiente em seu interior para absorver toda essa mão de obra hiper especializada. Segundo ele, a atual crise econômica e de gestão já aponta claramente para alguns desses indícios.

Em parte, a premissa da questão é verdadeira, principalmente se tomarmos apenas a rede pública de universidades como destino dos doutores formados no nosso sistema de pós-graduação. Principalmente se considerarmos, como bem aponta Amaral, que a crise econômica e a profunda desorganização do estado brasileiro ocorrida ao longo dos últimos anos, limitou consideravelmente a abertura de novos concursos públicos para o magistério superior, assim como contribuiu para arrefecer o processo de expansão e interiorização da rede federal de ensino.

No entanto, o artigo de Amaral deixa alguns elementos fora dessa equação, o que faz com que a questão fique pela metade, apesar de concordar com ele que ela precisa ser “pensada de forma franca”.

É tentando contribuir com seu texto que procuro alargar o alcance da questão e apontar outras perspectivas. A primeira, é que o ambiente universitário brasileiro não se resume apenas ao setor público. Há um gigantesco setor privado, responsável pela oferta da imensa maioria das vagas no ensino superior no país, e que ainda é absolutamente carente da presença de professores com doutorado em seus quadros.

Ao longo dos governos Lula e Dilma e com o PROUNI, havia acordos para que as universidades privadas que aderissem ao programa teriam que, como uma das contrapartidas, ampliar e qualificar os quadros docentes ampliando para 30%, no mínimo, o número de doutores em seus quadros funcionais. No entanto, o governo nunca insistiu ou cobrou verdadeiramente o cumprimento dessas premissas, o que elevaria bastante a demanda por novos doutores, para as mais diversas áreas do conhecimento e em todas as regiões do país. Assim como também nunca insistiu em uma fiscalização mais direta sobre a precarização do trabalho docente praticado nessas IES – mesmo despejando anualmente rios de dinheiro público via PROUNI – e que contribui para o baixo interesse dos novos doutores buscarem ocupar seus quadros. Essa continua sendo uma excelente porta de absorção do crescente número de doutores formados anualmente no país. Cabe um maior interesse em regulamentar o setor e integrá-lo de forma mais clara ao Sistema Nacional de Ensino Superior.

Um segundo elemento não considerado no texto de Amaral, é que além das universidades públicas e privadas há uma extensa rede de Institutos Federais que também absorvem consideravelmente novos doutores, muito embora seu processo de expansão também tenha sido estagnado ao longo dos últimos anos, mas ainda está muito distante de se exaurir. Mas não deixa de ser outro lugar de atração e absorção dessa mão de obra especializada que o Sistema Nacional de Pós-Graduação – SNPG tem produzido.

O texto de Amaral não faz referência a nenhum desses dois lugares. E, desse modo, deixa de tocar em outra dimensão de formação da pós-graduação no Brasil pouco privilegiada ou deixada em segundo plano, o ensino. O artigo abre pouco espaço para pensar essa formação. Pois ao centrar a crítica apenas na formação do pesquisador, pensando a formação de doutores apenas a partir desses ethos, se embota o fato de que o horizonte de trabalho privilegiado dos recém doutores é o magistério. Tendo em vista que não se faz concurso público em nenhuma universidade pública no Brasil para pesquisador universitário – esse cargo foi extinto pela lei 5.539/1968 -, mas para professor do magistério superior. E no caso dos IFs para o magistério do ensino básico, técnico e tecnológico.

Para dar sustentação a seu argumento inicial, Amaral aponta que cerca de 70% dos doutores formados no Brasil tem como horizonte de trabalho o retorno à universidade que o formou. Isso geraria, segundo o autor, uma espécie de “pirâmide financeira da carreira acadêmica” com a universidade sendo incapaz de retribuir àqueles a quem ela forma com as recompensas financeiras justas à formação adquirida ou nos mesmos parâmetros que prometeu ser possível ao longo do processo formativo. Essa premissa é também, em parte, verdadeira. O último Plano Nacional de Pós-Graduação, o V PNPG, já apontava para essa distorção e trazia um dado um pouco mais assustador: cerca de 90% dos doutores formados no Brasil até 2010 tinham como espaço de trabalho privilegiado a própria universidade. No entanto, o próprio PNPG, além de fazer esse diagnóstico, apontava soluções para a correção do problema. E aqui é preciso se tomar o conjunto dos cinco planos nacionais de pós-graduação aprovados no Brasil, para se ter uma ideia mais geral do que provocou essa distorção, ou melhor, essa concentração de doutores à procura de um mesmo lugar para trabalhar.

Ao nos debruçarmos sobre os Planos Nacionais de Pós-Graduação fica muito claro que essa concentração e saturação não decorre apenas da recente crise econômica ou de um cenário global que levou o país a percorrer o mesmo caminho que outros já percorreram.

A crise econômica e de gestão que atravessamos talvez tenha apenas acelerado o processo. Mas a saturação era um horizonte que chegaria mais cedo ou mais tarde, caso medidas de mitigação ou de mudança de rota não fossem tomadas. Algo que o V PNPG já havia identificado e buscado contornar, desde 2010.

Explico melhor: do primeiro ao segundo PNPG a diretriz central destes planos foi a formação de mestres e doutores para o próprio sistema universitário brasileiro, até então absolutamente deficiente de quadros especializados em todas as áreas do conhecimento, notadamente de doutores. Nesse sentido, todos os esforços do SNPG foram direcionados para isso, muito embora outras diretrizes estivessem no horizonte, como a formação de profissionais para as carreiras de estado e para atuação junto ao setor produtivo nacional. A partir do terceiro PNPG se soma a essa primeira diretriz, a necessidade da pós-graduação se estabelecer como o lugar da produção da ciência no Brasil e, por consequência, de formação do pesquisador, do cientista.

Até a formulação do V PNPG, esses foram os direcionamentos fundamentais do SNPG. Ou seja, de 1972 até mais ou menos 2008, quando se começa a discutir o V PNPG, esta foi a toada na pós-graduação brasileira. Nesses quase 40 anos um modelo de formação se impôs, assim como um ethos profissional correspondente. Temos, portanto, hegemonizando na pós-graduação o modelo acadêmico, tanto no mestrado como no doutorado, e a formação de um ethos profissional centrado na pesquisa e no pesquisador como modelo basilar de todas as premissas avaliativas, notadamente a partir dos produtos artigo científico/tese/livro. Esse modelo é dominante. Ele forma quem vai ser formador no futuro e que não consegue formar diferente porque não aprendeu diferente. É um circulo ao mesmo tempo virtuoso – porque o SNPG forma excelentes pesquisadores – e vicioso – porque só forma basicamente pesquisadores.

Desse modo, me parece, o problema é mais estrutural do que os percalços da crise financeira e de gestão atuais podem apontar: não é só uma questão de “pirâmide financeira”. O V PNPG já apontava soluções possíveis para esse problema estrutural. Uma delas estava diretamente relacionada a uma das diretrizes do Plano: a formação de mão de obra qualificada para a educação básica, para que possa contribuir com o salto de qualidade na educação que o país tanto reivindica. A dimensão do ensino voltava a ganhar maior projeção, e não apenas para o magistério superior. Foi essa diretriz que permitiu a criação dos mestrados profissionais para formação de professores, os Profs, a partir dos quais passou-se a discutir a possibilidade também de doutorados profissionais voltados para o ensino e a formação profissional em outras áreas.

Os mestrados profissionais não surgiram apenas nos anos 2000, eles datam da década de 1990, mas experimentam seu impulso justamente a partir desse estímulo do V PNPG. E, neste sentido, há um outro problema a resolver: os programas voltados para a formação profissional não podem ser avaliados pela mesma lógica do artigo científico/tese/livro ou estarem submetidos a ela. E aqui retomo a seguinte questão trazida por Amaral, e a amplio: qual o propósito/finalidade não apenas de um doutorado, mas do Sistema Nacional de Pós-Graduação? Formar apenas mestres e doutores no modelo acadêmico? A minha resposta é não. Ele precisa contemplar outras possibilidades de formação profissional, que contemplem a dimensão do ensino, mas que também avancem para além do binômio ensino-pesquisa. Mas, para isso, os mestrados e doutorados profissionais não podem ser pautados e avaliados pela lógica que impera no modelo acadêmico, que tem na produção do artigo científico de impacto e uma dissertação/tese ao final do processo como suas grandes finalidades. Essa não pode ser a lógica avaliativa a nortear todo o SNPG.

Isso não significa que devamos abrir mão ou renunciar à pesquisa básica e a produção de conhecimento, mas que é necessário entender que pesquisa e produção de conhecimento podem e devem ser direcionadas a outros propósitos e finalidades, notadamente para atuação em espaços profissionais não acadêmicos, como os da educação básica, seja em sala de aula, seja na gestão ou planejamento das redes. Seja para atuação em outros espaços não acadêmicos, públicos e/ou privados. E mais, não precisam ser só as pós-graduações acadêmicas a terem de cumprir com essas outras tarefas formativas. Elas precisam e devem continuar fazendo o que fazem a quase 40 anos com excelência, formar pesquisadores.

No entanto, o SNPG precisa apontar para outras possibilidades e caminhos formativos. E neste ponto, uma segunda questão apontada por Amaral ressoa com mais força: há nas universidades formadores capazes de formar esses profissionais? Uma vez que o recrutamento para o ensino superior via concurso privilegia o modelo artigo/tese/livro? Minha resposta a isso é positiva. E a experiência dos Profs. não me deixam mentir. Essa política pública tem dinamizado em muito a universidade brasileira onde ela acontece, muito embora o modelo acadêmico tenha buscado capturar os Profs. mediante a sua lógica avaliativa, reificada a cada quadrienal da CAPES via rankings de programas e os Qualis Periódicos e Livros. No entanto, a experiência tem mostrado que o saldo tem sido positivo e que os mestrados e, o ainda virtual e necessário doutorado profissional é plenamente possível se ser feito, contemplando outra lógica avaliativa e outros fatores de impacto.

Nesse formato, o fator de impacto fundamental não deve ser o modelo artigo/tese/livro, mas é o próprio profissional formado e o que ele vai ser capaz de produzir e, sobretudo, desenvolver no seu retorno ao ambiente de trabalho, seja com novas práticas pedagógicas e de gestão, seja com a construção de ferramentas que facilitem, dinamizem o trabalho e possam ser replicados para outras realidades.

Termino afirmando que a pós-graduação ainda é um bom negócio, não só para o país, mas também para aqueles que nela ingressam. Mas, para isso, se faz urgente e necessário enfrentar essa lógica avaliativa e os modos como ela vem sendo implementada e reificada nos últimos anos. E no SNPG brasileiro há um dado que favorece uma mudança estrutural mais rápida. Nosso SNPG é um sistema centralizado. É em grande medida a CAPES que o regra, regulamenta e financia. O V PNPG já havia apontado para essa possibilidade de mudança estrutural e começou a fazê-lo. É preciso retomar o caminho de onde foi interrompido, vislumbrando que a pós-graduação não é ou não pode ser apenas o lugar de formação em série e larga escala do mesmo tipo de sujeito ou de um único ethos profissional, por mais importante e fundamental que ele seja para qualquer sociedade.

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