Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com charge de Aroeira
Há mais de um ano afastado das câmeras e microfones, Lula reapareceu em vídeo em 26 de abril, quando recebeu no cárcere os jornalistas Florestan Fernandes Jr. e Mônica Bergamo.
Qual foi o impacto político da entrevista?
Como a principal característica das crises é a redução drástica do território de consenso, a resposta para essa pergunta também está sendo disputada. Lideranças políticas alimentadas pelo anti-petismo desqualificaram o fato, negando a importância da entrevista: João Dória disse que Lula está “esclerosado”. Jair Bolsonaro chamou o ex-presidente de “cachaceiro”.
Já as esquerdas em geral, e os petistas em particular, entraram em uma espécie de catarse virtual coletiva, como se a entrevista, por si só, fosse capaz de promover uma reviravolta no cenário político.
Nem tanto ao céu e nem tanto ao inferno.
Nada sugere mudanças no curto prazo na realidade política nacional. Porém, a entrevista está longe, muito longe mesmo, de ser fato político irrelevante.
Antes de qualquer coisa, a realização da entrevista, por si só, é a manifestação mais clara do atual momento da crise brasileira, quando está instaurada uma guerra total no núcleo jurídico da coligação golpista que tomou o poder de assalto em 2016. O Supremo Tribunal Federal, que vinha chancelando todos os arbítrios cometidos pela Operação Lava Jato, sentiu o sopro dos menudos de Curitiba na nuca.
Já há algum tempo que a Lava Jato deixou de ser o braço do PSDB para se tornar, ela mesma, a força política motora do pós-petismo. Hoje, a Lava Jato é mais poderosa que a base política de Jair Bolsonaro. É sempre importante lembrar que os vínculos de Bolsonaro com a Lava Jato não são orgânicos. A Lava Jato tem seu próprio projeto para o Brasil e Bolsonaro e seus milicianos não estão nele.
Queiroz, o laranjal do PSL, o assassinato de Marielle e Anderson. Nada disso foi esquecido. Tudo está guardado, esperando o momento certo. A Lava Jato é seu próprio partido político e, como tal, está disposta a engolir adversários e aliados. É assim que os partidos políticos agem.
Como a Lava Jato se tornou mais suprema que o próprio supremo, o STF decidiu tentar restabelecer a hierarquia. Lula é o grande troféu da Lava Jato. É impossível soltá-lo sem reconhecer que as impressões digitais dos ministros da Suprema Corte estão na farsa jurídica que fraudou as eleições de 2018. A entrevista se tornou, então, um recado enviado a Curitiba.
Sempre que a aristocracia da toga se sentir ameaçada pela Lava Jato, Lula será usado como munição. Uma diminuição da pena aqui, uma entrevista acolá.
Mesmo preso, Lula continua bastante ativo na política. Na verdade, a cela é um gabinete de trabalho. Lula passa o dia despachando, lendo, recebendo aliados e liderando o Partido dos Trabalhadores. Lula está muito bem informado, sabe com clareza o que está acontecendo, tem total percepção de que se existe alguma possibilidade de sair da cadeia ainda em vida, ela passa pelo acirramento do conflito entre o STF e a Lava Jato.
Nessa guerra, Lula sabe qual é o seu lado. Por isso, a Lava Jato, citada nominalmente nas pessoas de Sérgio Moro e Deltan Dallagnol, foi atacada do início ao fim da entrevista.
“Mentirosos”, “farsantes”, “criminosos” foram os adjetivos usados. Já Bolsonaro foi tratado como louco e despreparado, como uma caricatura. Entre os adversários possíveis, Lula sabe qual é o mais forte, o mais perigoso.
Por outro lado, o STF foi tratado como o guardião da democracia, como a instituição que tem histórico comprometido com a defesa dos direitos dos oprimidos. Lula elogiou a “vocação democrática” do STF, citando os posicionamentos da suprema corte em favor da criação da reserva indígena Raposa da Serra do Sol e em favor da implementação do sistema de cotas para o ingresso de negros nas universidades públicas.
A essa altura do campeonato, pouco importa se o STF chancelou o golpe contra Dilma e a prisão arbitrária de Lula. Pouco importa se essa “vocação democrática” é mesmo um dado da realidade ou não passa de retórica política. Ao associar o STF à defesa dos direitos de índios e negros, Lula conseguiu reunir, numa mesma formulação, a aristocracia da toga e as minorias.
A operação Lava Jato declarou guerra contra o STF. O governo de Jair Bolsonaro declarou guerra contra índios e negros. Lula quer consolidar sua imagem como o principal antagonista à Lava Jato e como líder da oposição ao governo de Bolsonaro, quer liderar uma frente ampla em defesa da democracia e dos direitos sociais. Foi este foi o objetivo da entrevista.
Relações internacionais, políticas públicas de assistência social, macro-economia e drama familiar. Lula passou por todos esses temas com desenvoltura, mostrando estar em perfeita forma física e intelectual.
A entrevista acabou, os jornalistas foram embora e Lula foi reconduzido à sua cela. A reforma da previdência continua tramitando. Treze milhões de brasileiros ainda estão desempregados. Seria ingênuo achar que uma simples entrevista pudesse ser capaz de transformar a realidade.
Definitivamente, não é.
Mas a repercussão impressionante, a despeito do silêncio da mídia hegemônica, comprova a importância que Lula ainda tem.
Em duas horas de entrevista, Lula foi mais eficiente do que Ciro Gomes, Guilherme Boulos e Fernando Haddad, que estão por aí, livres, soltos. A notícia para a esquerda brasileira não é nada boa. A entrevista só veio reforçar o que muitos já sabem: Lula ainda não tem herdeiro. Até aqui, ninguém conseguiu substituí-lo como liderança popular.
É que quando falam, os outros apenas falam. Falam de números, de dados, mas não afetam e pouco explicam. Mais do que falar, Lula explica, e afeta. Consegue ensinar aos que mal sabem ler. Antes de tudo, Lula é um pedagogo.