A MIOPIA DO MORALISTA SANITÁRIO

Charge de Pelicano

ARTIGO

 

RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

 

11 de março de 2020: a Organização Mundial da Saúde utilizou, pela primeira vez, o conceito “pandemia” para se referir à Covid-19. O conceito sempre vem depois da experiência. Como realidade efetiva, a pandemia já existia sabe lá Deus desde quando. A conceituação da doença como pandemia é, antes de tudo, um gesto político que envolve muita coisa para além das bancadas laboratoriais.

Os especialistas são unânimes: ainda não há remédio, ainda não há vacina, apesar dos esforços da comunidade científica. Somente o isolamento social é capaz de retardar a evolução do contágio, garantindo tempo necessário para o preparo dos sistemas de saúde. Ressonou pelo mundo, então, as mesmas palavras de ordem: “Stay at home” ou “Fique em casa”, no belíssimo idioma de Machado de Assis e Guimarães Rosa.

Os cientistas estão corretos, corretíssimos. Pronto! A parte científica dessa reflexão acaba aqui. Agora, começa a parte política. Pois sim, essa discussão não é apenas científica. Não existe discussão “apenas cientifica”. Toda discussão, em alguma medida, é política também.

No momento em que escrevo este texto, o Brasil está assistindo a evolução assustadora na sua curva de contaminação e mortes. Alguns já dizem que em pouco tempo seremos o epicentro mundial da pandemia. Segundo dados da tecnologia de geolocalização, nosso índice médio de isolamento social é de 47%, bem distante dos 70% considerados ideais.

Por que mais da metade da população brasileira não está respeitando o isolamento social?

Os moralistas sanitários têm resposta na ponta de língua. Os moralistas sempre têm resposta na ponta da língua. O tempo do moralismo é o tempo rápido. O moralista é impaciente, é ansioso.

Para o moralista sanitário, os que não obedecem as regras de isolamento social são ignorantes, irresponsáveis, “sem empatia”. O moralista goza com os adjetivos.

O moralista sanitário privatiza a responsabilidade, e ao trazer dilemas estruturais para o plano do comportamento individual, acaba despolitizando uma questão que é essencialmente política.

O governo federal entregou apenas 11% dos leitos prometidos.

Quando a Covid-19 chegou ao Brasil, encontrou o país devastado por uma grave crise democrática, com serviços públicos sendo precarizados e direitos trabalhistas sendo cassados.

Antes da Covid 19, veio a PEC dos Gastos, veio a Reforma Trabalhista, veio a Reforma da Previdência.

Segundo o IBGE, mais da metade da força produtiva brasileira, aproximadamente 38 milhões de pessoas, trabalham na informalidade, sem nenhuma seguridade social.

Pensem aí na idade das cavernas, naquele sujeito que precisa sair pra caçar todos os dias. Se não sai, não come. Esse é o trabalhador informal. O auxílio emergencial de 600 reais não resolve o problema. É pouco e o governo federal, pela combinação da má vontade política com a incompetência administrativa, não consegue fazer o dinheiro chegar aos que mais precisam. A covid 19 mata. A fome mata primeiro.

Segundo o PNAD, 105 milhões de brasileiros não têm acesso ao saneamento básico e 21 milhões não têm água potável em casa pra beber, tomar banho e lavar as mãos.

A Covid-19, e um montão de outras doenças, é transmitida também pelo esgoto.

Mais de 11 milhões de brasileiros moram em favelas, em moradias pequenas, insalubres, com iluminação e ventilação insuficientes, onde se amontoam seis, sete, oito pessoas.

Para o moralista sanitário nada disso importa. A explosão da curva da morte é culpa dos indivíduos, daqueles que não obedecem o isolamento social. O moralista resolve todos os problemas no plano do comportamento individual. O moralista é viciado no comportamento individual. É a sua cocaína.

A ciência diz que o Brasil precisa de 70% de isolamento social para evitar o colapso do sistema de saúde.

Mas para a maioria dos brasileiros, o colapso do sistema de saúde é a normalidade. Também é normal a enchente em janeiro, o desabamento de encosta, a violência do tráfico de drogas, a violência policial. Para a maioria dos brasileiros, a Covid-19 é um problema entre outros tantos.

No Brasil, os pobres sempre são grupo de risco.

Não estou romantizando os pobres, nem sugerindo que furar o isolamento social é ato de resistência. “Resistência” é daquelas palavras desgastadas a tal ponto de se tornarem um tanto irritantes, quase sem sentido. Se tudo é resistência, nada é resistência.

Para os mais pobres, o isolamento social, simplesmente, não é possível, independente do que diz a ciência. A ciência também diz que eles precisam comer bem, ter o esgoto tratado, ter água potável na torneira. E aí?

Sim, nos bairros de periferia, as pessoas estão vivendo como se nada tivesse acontecendo, como se tudo estivesse normal. Sentam no boteco pra beber cerveja, jogam futebol no campinho, trocam ideia no portão. Não digo que estão certos. Nem digo que estão errados. É que essa não é uma discussão moral. Não é apenas uma discussão científica. É uma discussão também política.

Pra essa gente, a normalidade é estar em constante risco de vida.

Antes de trazer novos problemas, a Covid-19 escancarou os mesmos problemas de sempre. Não subestimo a gravidade da pandemia. Só estou dizendo que o Brasil tem uma dívida histórica com a civilização. Por que a Covid-19 aqui não seria devastadora? Qual seria o milagre?

“É só ficar em casa”, insiste o leitor moralista. O moralista sanitário, como toda moralista, é míope, é tão perigoso quanto o maldito vírus. Se afastem. Se protejam. Se cuidem. Se puderem, fiquem em casa.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

2 respostas

  1. O moralista sanitário desconhece a palavra empatia, tão em voga nos dias atuais… além disso, o corona vírus chegou ao Brasil em momento já trágico, onde encontrou um presidente psicopata e que se comporta com indiferença diante do sofrimento de tantas pessoas.

  2. Concordo plenamente com isso. O moralista sanitario é aquele que tem casa de campo, apartamento com ar condicionado e TV a cabo, tem renda pra passar a crise vendo filmes, lendo livros e comendo comida boa pelos aplicativos. Os que não entendem a pandemia são os que vão levar a comida. O Brasil é, antes de tudo, hipócrita.

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