Por Ângela Carrato, jornalista e professora no Departamento de Comunicação Social da UFMG
Qualquer pessoa razoavelmente informada e intelectualmente honesta sabe que o roubo do pré-sal brasileiro e o desmonte da Petrobras estão no cerne do golpe que depôs a presidenta Dilma Rousseff, em 2016. Sabe que essas ações foram a principal razão para que a Operação Lava Jato tentasse, por todas as maneiras, desmoralizar a principal empresa estatal brasileira e a maior da América Latina, e, sobretudo, se valesse de denúncias infundadas de corrupção, para derrubar Dilma, prender Lula e evitar que ele pudesse disputar as eleições de 2018, quando era franco favorito.
Sabe também que esse golpe não foi do tipo tradicional, com tanques nas ruas, como aconteceu no Brasil em 1964 e historicamente ao longo de décadas em países da região.
O golpe que depôs Dilma atende pelo nome de guerra híbrida, uma combinação de ações e guerras não convencionais para substituir governos em diversas partes do mundo.
Os Estados Unidos não são os únicos, mas seguramente é o país que mais se valeu e continua se valendo deste tipo de expediente, para o qual conta com o apoio de setores da classe dominante dos países alvo e da mídia corporativa.
Na guerra híbrida, o objetivo é fomentar e manejar a opinião pública contra governos progressistas ou considerados adversários com vistas a depô-los para rapinar as riquezas nacionais sem que a participação do Tio Sam e de seus aliados fique evidenciada.
Como não há crime perfeito, as digitais dos envolvidos acabam aparecendo.
Se no golpe de 1964 foram necessárias várias décadas para que a atuação da Casa Branca ficasse amplamente comprovada, contra Lula e Dilma foi bem mais rápido.
Em junho de 2019 vinham a público, através de vazamentos, as conversas entre o então juiz Sérgio Moro e o promotor federal Deltan Dallagnol, ambos da Operação Lava Jato, com setores do Departamento de Justiça dos Estados Unidos (DOJ). Por essas conversas ficava evidente não só o interesse dos Estados Unidos na desmoralização e destruição da Petrobras, como o esforço para prender Lula e mantê-lo fora das eleições de 2018.
Aos olhos de hoje, o objetivo é claro: se Lula fosse eleito naquele ano, como tudo indicava, o golpe de 2016 chegaria ao fim, pois ele desfaria as atrocidades cometidas por Michel Temer contra o pré-sal e a Petrobras e o governo neofascista de Jair Bolsonaro nem teria existido.
Se uma das primeiras providências do golpista Temer foi entregar o pré-sal brasileiro para a exploração das multinacionais, isentando-as de impostos, e alterar a lei das estatais, retirando poderes do governo sobre a Petrobras, Bolsonaro aprofundou a destruição da empresa.
Foi sob o comando dele e de seu ministro da Economia, Paulo Guedes, que a Petrobras foi obrigada a privatizar, a preço de banana, vários de seus ativos, a exemplo de refinarias, gasodutos e da BR Distribuidora, além de ter adotado uma modalidade para cálculo do preço dos combustíveis que os elevou às alturas.
Visando exclusivamente os interesses estrangeiros, a Petrobras passou a praticar uma política que a transformou em mera vendedora de petróleo cru e importadora de gasolina. Política profundamente lesiva aos interesses nacionais, uma vez que o Brasil é autossuficiente em petróleo e poderia continuar refinando-o aqui, como já fazia, ao invés de passar a importá-lo em preços dolarizados.
Em meados do ano passado, por exemplo, o litro de gasolina chegou próximo a R$ 9,00 em várias capitais brasileiras. Esse valor só foi reduzido, por apenas 60 dias, às vésperas da eleição, porque Bolsonaro temia o impacto nas urnas.
Bolsonaro e seus apoiadores internos e externos apostaram tudo na vitória. Inconformados com a derrota nas urnas, estimularam os atos terroristas de 8 de janeiro.
Após a nova derrota, tentam, a partir de então, transformar Lula, neste terceiro governo, numa espécie de rainha da Inglaterra, aquela que reinava sem governar.
O caminho escolhido é o de acionar as “bombas” neoliberais deixadas em vários setores da economia, com a finalidade de travar a retomada do crescimento e do desenvolvimento, jogando o Brasil numa estagnação ou mesmo recessão.
O caso da Petrobras é, sem dúvida, dos mais emblemáticos.
Uma das principais promessas de campanha de Lula foi a redução dos preços dos combustíveis, com o fim da PPI, a paridade de preços internacionais.
Para o cidadão comum, bastaria Lula mudar a direção da Petrobras e o problema estaria resolvido. Porém, a situação é muito mais complexa e os golpistas e seus aliados já começam a explorá-la contra Lula.
A lei das estatais de 2016 retirou do governo federal os principais instrumentos para gerir a Petrobras, mesmo sendo o seu acionista majoritário.
O nome indicado por Lula para presidir a empresa, Jean Paul Prates, só assumirá plenamente o cargo no final de abril, quando deverão ser escolhidos os diretores e novos integrantes para os conselhos de administração e fiscal.
Até lá, a Petrobras continuará sendo comandada por bolsonaristas e da forma que interessa exclusivamente ao chamado “mercado”.
Na prática, os interesses de grandes fundos internacionais de investimentos como o Black Rock são os que continuam mandando e desmandando na empresa.
É isso que explica, por exemplo, o fato de em pleno governo Lula, a estatal manter o pagamento de dividendos astronômicos para seus acionistas e não dispor de orçamento para investimentos, mesmo tendo acabado de anunciar um lucro recorde de R$ 188,5 bilhões em 2022, o maior de sua história.
Os golpistas desvirtuaram de tal maneira o papel da Petrobras como empresa indutora do desenvolvimento, que sua participação no PIB brasileiro nos governos petistas foi de quase 18% e agora caiu para 6% e continuará caindo, se Lula não conseguir estancar esta sangria e recuperar a empresa para os brasileiros.
Em várias oportunidades, Lula já se posicionou contra este tipo de rapinagem, lembrando que nenhuma empresa séria no mundo destina todo o seu lucro para pagamento de dividendos, sem se preocupar em fazer novos investimentos, sem se preocupar com pesquisa e inovação, especialmente numa área como a de energia, onde a concorrência é brutal.
Durante a cerimônia de lançamento do novo Programa Bolsa Família, Lula voltou ao assunto, renovando não só suas críticas, mas deixando claro que em seu governo a Petrobras retomará o papel para o qual foi criada. Vale dizer: uma empresa pautada pela inovação e pelo desenvolvimento nacional.
Se o Brasil tivesse uma mídia corporativa minimamente comprometida com esses interesses, era para a situação da Petrobras estar sendo mostrada, em detalhes, para a população, bem como os esforços de Lula para recuperá-la.
Como historicamente esta mídia sempre jogou a favor dos interesses internacionais, agora ela oscila entre esconder do respeitável público o que se passa ou distorcer a realidade para divulgar apenas o que lhe é conveniente.
Os telejornais da Globo e da Record, por exemplo, não fazem qualquer referência às críticas de Lula à situação atual da Petrobras, enquanto jornais diários criticam “interferências” do governo na empresa e abertamente combatem qualquer mudança na politica de distribuição de dividendos.
Pior ainda. A mídia corporativa brasileira faz de tudo para destacar o lucro recorde da empresa como algo extremamente positivo, sem qualquer alusão às condições em que se deu.
As manchetes e notícias de jornais como O Globo, Folha de S. Paulo e Estado de S. Paulo descontextualizam a situação de tal forma, que induzem o leitor a pensar que se a empresa teve lucro recorde, tudo vai às mil maravilhas e o governo Lula não tem nada para mudar ali.
Não é dito, por exemplo, que esse lucro só foi conseguido à custa da venda de ativos da empresa e dos preços astronômicos dos combustíveis. Os dividendos bilionários que os grandes acionistas receberam se devem aos altíssimos preços pagos pela população pelos combustíveis. Com esta absurda transferência de renda, meia dúzia de bilionários ficam cada vez mais ricos à custa da pobreza e da miséria de amplos setores da população brasileira.
O festival de canalhices contra a Petrobras teve sequência, quando da primeira entrevista coletiva do seu novo presidente. A mídia corporativa estava presente em peso – só do grupo Globo havia cinco repórteres. Todos perguntaram as mesmas coisas: a nova gestão pretende mudar a política de preços? Como fica o pagamento dos dividendos?
Não se ouviu uma pergunta sequer sobre as propostas do novo dirigente ou sobre os seus planos para a empresa.
Nada.
A única coisa que interessava aos repórteres, na realidade aos seus patrões, era saber se os acionistas continuarão recebendo os dividendos tal como vem acontecendo.
Para um toque mais canalha ainda, o jornal o Globo, em editorial, na sexta-feira (3/3) praticamente ameaçou o presidente Lula com o extermínio de sua popularidade, caso insista na defesa da retomada da Petrobras para o povo brasileiro.
Minha surpresa em relação a esse tipo de atitude da mídia corporativa brasileira é zero. Desde sempre estes “barões da mídia” estiveram ao lado dos lobbies internacionais e contra o Brasil quando o assunto é petróleo, Petrobras e desenvolvimento nacional.
Assis Chateaubriand e Roberto Marinho, adversários nos negócios, se uniram nas décadas de 1950 e 1960 no combate à criação da Petrobras e ao seu desenvolvimento. Uma das razões do suicídio de Getúlio Vargas foram as pressões que passou a enfrentar, por ter criado a empresa, em outubro de 1953.
Uma das razões do golpe contra João Goulart, em 1964, foi a lei da remessa de lucros aprovada em seu governo, que inverteu a política econômica dos anos anteriores, que dava tratamento privilegiado aos capitais estrangeiros.
Pelo visto, a mídia corporativa brasileira, Grupo Globo à frente, reassume o papel de porta-voz, que nunca abandonou, dos lobbies internacionais e da “casa grande” e, na cara dura, ameaça Lula.
Vale destacar que no episódio das joias dadas pelo governo saudita à Michelle e a Bolsonaro, a mídia corporativa insiste em tratar como “presentes” o que é descaradamente propina. Não existe presente no valor de mais de R$ 16 milhões! E, por qual razão, o governo saudita presentearia a família Bolsonaro com joias tão valiosas?
Além de não mencionar em momento algum o termo propina, não ocorreu à mídia corporativa brasileira atentar para uma coincidência basica: os tais presentes aconteceram no exato momento em que Bolsonaro privatizava, por menos da metade do seu valor, a refinaria Landulfo Alves, que pertencia à Petrobras e foi comprada por um fundo de investimento árabe.
A Federação Única dos Petroleiros (FUP) tem feito esta denúncia e exigido apuração.
Como a mídia corporativa reage? Começa a tirar o caso das joias das manchetes e volta para o que realmente lhe interessa: apontar riscos para uma recessão em 2023, ao mesmo tempo em que ressalta que 2022 foi um ótimo ano para a economia brasileira.
Dispensável dizer que o objetivo é criticar a política econômica de Lula e rasgar elogios para a atuação do ultra neoliberal Paulo Guedes.
Mais uma vez, minha surpresa é zero.
Tudo leva a crer que a mídia brasileira, Globo à frente, sonha em retomar uma espécie de Operação Lava Jato em nova roupagem, para tentar obrigar o governo a manter a Petrobras como “vaca leiteira” dos oligarcas nacionais e internacionais.
Espero que Lula esteja bem consciente e preparado para o tamanho da guerra que o aguarda.
Espero, igualmente, que a população brasileira, depois de tudo o que sofreu nos últimos seis anos, não caia novamente no canto da sereia da mídia golpista.
Não há fim à vista para a guerra híbrida no Brasil.