Por Alexandre Santos de Moraes, professor na Universidade Federal Fluminense
Um vídeo publicado no Twitter dos Jornalistas Livres gerou repercussão nacional no último fim de semana. A faxineira Ilza Ramos Rodrigues foi humilhada pelo empresário e militante bolsonarista Cássio Cenali, de Itapeva (SP). Na gravação, o apoiador do atual presidente afirma que aquele seria o último prato que serviria e que ela deveria procurar Lula pra continuar comendo, uma vez que declarou voto nele.
Esse caso asqueroso, coerente com tudo que o bolsonarismo representa, produziu enorme comoção nacional. Ilza Rodrigues não dependerá mais da caridade dele. O MST garantiu fornecimento de cesta básica por seis meses e diversas entidades da cidade paulista se dispuseram a apoiá-la. Cenali até pediu desculpas em novo vídeo, o que não torna a situação menos representativa dos usos políticos da fome que Bolsonaro e seus cães fazem todos os dias.
Caridade é poder. Quem pratica a caridade precisa ter mais do que quem recebe. O empresário só doou comida porque não lhe falta; a faxineira só recebeu porque precisava. Essa diferença óbvia não passou despercebida do pensamento cristão, que entendeu perfeitamente o valor do silêncio: só se atinge Deus pela caridade honesta, tão silenciosa e abnegada que a boa ação da mão direita seria ignorada pela mão esquerda.
Entre 2002 e 2013, durante os governos Lula e Dilma, o número de brasileiros em estado de subalimentação diminuiu 82%. Em 2014, o Brasil saiu do Mapa da Fome e foi considerado pela ONU um exemplo a ser seguido. Não houve milagre: o feito se deu a partir de políticas públicas sérias, como o Bolsa Família, o maior programa de transferência condicionada de renda de nossa história. Hoje, a situação do país é gravíssima, já que 4,1% da população enfrenta a fome crônica. Voltamos ao Mapa da Fome durante o governo Bolsonaro. Nesse caso também não houve milagre: foi uma decisão política.
O vídeo mostra que a democracia também é um fato material. A decisão de filmar a chantagem causa indignação, mas não é diferente do que se vê nos ardis do governo e em igrejas que fazem caridade logo após pedir votos para o fascista. Sem muita enrolação, o que temos diante de nós é um caso típico de voto de cabresto, esse câncer da democracia brasileira que negocia sacos de cimento, dentaduras e até marmitas em troca da liberdade de decisão. Essa forma de abuso do poder econômico, que tanto estudamos nos livros de História, diminuiu sua presença no noticiário na mesma época em que os brasileiros faziam três refeições por dia.
Diversas tentativas buscaram transformar o Bolsa Família em projeto de Lei. O programa deixaria de ser uma política dos governos do PT e se transformaria em política de Estado. A iniciativa não foi acolhida pelo Congresso Nacional. Após 18 anos, em outubro do ano passado, Bolsonaro encerrou o programa e deu início ao Auxílio Brasil, uma iniciativa casuística, pouco regular e indisfarçavelmente eleitoreira. Em outras palavras, Cássio Cenali não foi nem original em sua crueldade: ele apenas emulou, de forma medíocre e rasteira, o que seu patrão faz em Brasília e o que a direita conservadora sempre fez em sua prática política.