Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História da Universidade Federal da Bahia, com charge de Berzé 

 

 

Contrariando as previsões dos especialistas, Jair Bolsonaro foi eleito com 55% dos votos válidos, uma votação bem expressiva. O bolsonarismo, definitivamente, é um movimento de massas. Está presente em tudo quanto é lugar, em todos os segmentos da sociedade. A popularidade do presidente eleito é altíssima.

Eu, que não votei em Bolsonaro, que tenho verdadeiro horror à sua figura pública, pergunto a mim mesmo e pergunto a você, leitor e leitora: será possível que tanta gente assim esteja errada? A maioria pode errar?

É essa a discussão que proponho neste ensaio.

Pra começar, argumento que a maioria pode, sim, errar, e isso acontece com alguma frequência. Por isso, a cultura política ocidental inventou arranjos institucionais para proteger a sociedade dos erros da maioria. Está errado quem acha que a democracia é a simples imposição da vontade da maioria. A democracia é bem mais que isso, seu funcionamento é bem mais complexo.

Quando o que está em discussão é a vontade das massas, costumamos tomar dois caminhos opostos: ou fetichizamos ou desqualificamos a opinião da maioria.

As duas soluções são fáceis e equivocadas. Na primeira, o erro está em acreditar que a verdade é uma simples questão de soma matemática. Se 1 + 1 + 1 + 1….. dizem que o mundo é de determinada maneira, é porque deve ser mesmo. A segunda é alimentada por uma perspectiva prepotente e elitista que desvaloriza a opinião da maioria pelo simples fato de ser maioria.

Penso que o caminho correto a tomar é aquele que encara com muita naturalidade o fato de que as massas podem, simplesmente, errar na avaliação da realidade, assim como podem acertar também. A história contemporânea do Brasil nos apresenta alguns exemplos.

 

1) As vitórias de Fernando Henrique Cardoso em 1994 e 1998.

A massa que elegeu e reelegeu Fernando Henrique Cardoso sabia o que estava fazendo. Na época, eu ainda não tinha maioridade eleitoral. Se tivesse, certamente teria votado em Lula. Mas não posso negar que as pessoas sabiam o que estavam fazendo. Fernando Henrique Cardoso representava o controle da inflação, que é uma das políticas sociais mais importantes na proteção das famílias mais pobres.

A inflação é particularmente cruel com as famílias mais pobres. A classe média ainda tem onde cortar em sua cesta de consumo, consegue se adaptar. Muda a marca do sabão em pó, cancela o almoço no restaurante aos domingos. A família pobre, que já vive no limite do consumo básico, é destruída pela inflação.

Lembro do meu avô, homem muito humilde, indo votar todo animado em Fernando Henrique Cardoso. O velho dizia: “Agora, com cem reais, a gente consegue encher o carrinho o mês inteiro”.

Fernando Henrique Cardoso foi eleito e reeleito por essa racionalidade popular. Não seria o meu candidato, mas não dá pra dizer que o povão estava errado.

 

2) A reeleição de Lula em 2006 e a eleição de Dilma em 2010.

É uma obviedade que não foram os governos dirigidos pelo Partidos dos Trabalhadores que inventaram as políticas públicas de amparo à pobreza. Se engatarmos uma marcha-ré na linha do tempo, passaremos pelos governos de Fernando Henrique Cardoso, pelos governos dos militares (especialmente pelo de Geisel), pelos direitos trabalhistas criados por João Goulart e Getúlio Vargas e chegaremos sabe Deus onde.

Porém, sem dúvida, os governos do PT levaram essas políticas sociais a níveis de alcance e eficiência até então inéditos na história do Brasil.

Como nunca antes no nosso país, a pobreza extrema foi combatida. O miserável foi transformado em pobre. O impacto na vida das pessoas foi enorme. Como mostra o pioneiro estudo de André Singer sobre as eleições de 2006, as pessoas perceberam isso e manifestaram eleitoralmente essa percepção.

O Partido dos Trabalhadores, que até esse momento tinha enorme dificuldade em furar a bolha da classe média progressista e dos movimentos sociais organizados, se tornou o preferido da grande massa de brasileiros e brasileiras mais pobres.

Há pouco, conversando com uma senhora muito humilde, em um bar aqui de Salvador, ouvi algo muito ilustrativo: “O Fernando Henrique dava um pozinho pra misturar na comida das crianças. Lula deu o Bolsa Família pra gente comprar um gás, um desodorante”.

A maioria reelegeu Lula em 2006 e elegeu Dilma em 2010 movida por um diagnóstico correto da realidade. Não foi apenas o desejo da mudança, o mesmo que elegeu Lula em 2002. Nem o medo do retrocesso, que reelegeu Dilma em 2014.

Em 2006 e em 2010, a maioria acertou na avaliação, partindo de uma experiência real de distribuição de renda e de melhoria na qualidade de vida. Temos aqui racionalidade política, cálculo eleitoral.

 

3) A vitória de Jair Bolsonaro em 2018.

A disputa eleitoral de 2018 foi atravessada pelos temas da corrupção e da violência urbana. Tudo mais ficou em segundo plano. Esses dois assuntos têm especial poder de afetar os sentidos das pessoas.

A criatura liga a TV às 20 horas, depois de um dia inteiro de trabalho repetitivo e estafante, e é bombardeada por denúncias de corrupção em série. Pouco importa se os devidos processos legais confirmaram ou não as tais denúncias. Foi pra TV, no horário nobre. É o que basta para aumentar a sensação de corrupção.

Naquele papo no portão, a pessoa fica sabendo que o filho da vizinha foi assaltado, logo depois dela mesma ter sido assaltada. Na TV, Datena espetaculariza cada evento de violência. Pouco importam as estatísticas. A sensação de insegurança já está plantada.

Jair Bolsonaro foi capaz de se alimentar desse duplo sentimento para se apresentar como o candidato da mudança, como um antissistema. Grande parte de sua vitória se explica pelo sucesso em construir essa narrativa. Não foi apenas isso, é claro. Mas foi isso também.

Mas esperem aí: Bolsonaro é deputado há 28 anos. Foram sete mandatos. Deputado federal pelo Rio de Janeiro, Bolsonaro nunca fez nada pela segurança pública do Estado conhecido com o mais violento do Brasil. Até 2016, Bolsonaro era filiado ao PP, o campeão da corrupção.

Diante de uma realidade tão gritante, como ele conseguiu convencer 55% do eleitorado de que era um outsider capaz de “mudar tudo isso aí”?

Está aqui o erro da maioria. Um gravíssimo erro de avaliação. Diferente dos casos anteriores dos quais falei há pouco, nas eleições desse ano a maioria, simplesmente, avaliou errado, errou e errou muito.

O que levou a maioria ao erro?

Uma campanha poderosíssima de destruição da imagem do petismo, a única força política capaz de fazer frente ao bolsonarismo; o impedimento de Lula; a indústria de fake news pelo WhatsApp… sem dúvida todos são aspectos importantes, mas que devem ser lidos com cuidado, para não corrermos o risco de endossar a velha tese da “manipulação da massa”.

O povão não é gado. O povão erra o caminho, toma a trilha do abate, mas faz porque quer. As pessoas olham para a realidade e agem, conduzidas por uma lógica própria. O eleitor médio brasileiro viu, erradamente, Bolsonaro como um outsider porque quis ver, porque se sentiu afetado pela imagem de Bolsonaro, se identificou com ele.

O tiozão tomando café da manhã numa mesa toda bagunçada, olhando para a tela do celular por cima dos óculos pendurados na ponta do nariz. Vocabulário estreito. Soluções fáceis para os problemas mais complexos. Falta de pudor em verbalizar uma agenda comportamental de controle dos corpos de mulheres e gays. A empatia levou ao erro.

A maioria não foi manipulada. A maioria, simplesmente, errou.

E agora? Temos um governo não empossado e que em menos de um mês depois de eleito já foi capaz de provocar dois incidentes internacionais, comprometendo diretamente o fluxo de exportação de proteína animal para os países árabes e os serviços de saúde que Cuba exportava para nós.

Como proteger a sociedade de um gravíssimo erro cometido pela maioria?

Novamente, as instituições da República, que desde o início da crise estão falhando, serão testadas.

Não interessa se o governo eleito pela maioria quer flexibilizar o porte de armas de fogo. Os estudiosos da segurança pública dizem que essa não é a solução. Cabe ao Ministério Público contrariar a vontade da maioria.

Se a maioria quer a criminalização das mulheres que interrompem gravidez, é função do STF contraditar e garantir o direito individual ao controle feminino do processo reprodutivo. Não importa se a medida é impopular. Nem sempre a opinião pública está correta.

Não se trata de autoritarismo, ou de falta de respeito à democracia. A democracia não é a simples tradução da vontade da maioria. A democracia é o império do bem comum. Nem sempre a maioria sabe o que é o bem comum. A função da minoria ilustrada, nesses momentos, é evitar a destruição total, salvando a sociedade dela mesma.

É função da democracia proteger as minorias da tirania da maioria.

Resta saber se as instituições que até aqui faltaram com a República serão capazes dessa intervenção messiânica. Tomara que sim. Temo que não.

 

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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