ARTIGO
Mateus Pereira, Mayra Marques e Valdei Araujo*
Cento e cinquenta dias se passaram, após um início recheado de perguntas: Como a pandemia afeta o destino das democracias liberais? Como as direitas, em especial, a extrema-direita e a Alt Right, estão lidando com a revalorização da ciência e da curadoria jornalística? Quem herdará as estruturas de vigilância que estão se constituindo? Quem será mais capaz de combater a pandemia: as ditaduras ou as democracias? Por que demoramos tanto a aceitar que seríamos atingidos pela pandemia? O que o governo Bolsonaro ganha e perde com a pandemia?
Foram essas as perguntas que ocuparam o nosso tempo e as nossas preocupações quando decidimos publicar nossas sensações e reflexões sobre a pandemia. O que começou como um diário tomou a forma mais aberta e plural de um almanaque, cuja materialização se realiza a partir dos acontecimentos. Outras questões e análises foram sendo incorporadas ao texto, já que a pandemia, somada à performance de Bolsonaro e do bolsonarismo, estabeleceu um jogo dinâmico, para nós, brasileiros, entre previsibilidade e imprevisibilidade, que nos fez tomar direções, muitas vezes distintas das previstas nos primeiros esboços do livro.
O leitor também perceberá que, na nossa escrita, algumas vezes podemos passar a sensação de que está acontecendo tudo-ao-mesmo-tempo-agora, e talvez possa se sentir desnorteado com o fluxo de informações que nem sempre têm relação entre si. No entanto, como mostraremos, sentir-se sufocado pelas cascatas de informações parece ser uma experiência própria do nosso tempo epidêmico, bem como de sua infodemia.
Pois bem, a nossa tentativa foi uma escrita, de forma bastante livre, do registro dos eventos a que assistimos e ou vivenciamos, tendo como referência as perguntas que nos nortearam. Foram com esses elementos que pensamos em fazer uma espécie de diário dos 150 dias da pandemia, desde que a China informou à Organização Mundial de Saúde (OMS) sobre o novo vírus, no dia 31 de dezembro de 2019. Ao longo desse tempo, acabamos por alternar e misturar três gêneros de escrita: o diário, a cronologia e a crônica, que reunidos formam o Almanaque. O nosso laboratório-base foi, o tempo todo, o grupo de WhatsApp chamado “Atualismo”, com o qual, desde 2015, produzimos reflexões e debates.
Boa parte do que escrevemos foi publicado, em primeira mão, e em português, pelo site Jornalistas Livres, e, em inglês, pelo site Brazil Solidarity Initiative. Inicialmente, a nossa escrita foi impulsionada pela ideia de que um esforço de parada reflexiva é, em nosso tempo, necessário para evitar sermos devorados pelas atualizações constantes, fragmentárias e cada vez mais imprecisas e disputadas. A nova direita e a extrema-direita global têm se utilizado da agitação das notícias, provocadas pelo fluxo de atualizações, e pelas chamadas fake news, para reforçar o seu poder. Como acreditamos que o caminho progressista precisa seguir em outra direção, o nosso trabalho tem, assim, a intenção de nos levar a um engajamento que busque outras alternativas ao que nos apresentam as direitas mundiais.
A escolha pela forma de almanaque foi reforçada pelo clima apocalíptico que temos vivido. Além do noticiário diário, dos canais de streaming, dos filmes sobre epidemias, como Outbreak (Wolfgang Petersen, 1995), etc, reforçam essa sensação de uma contagem progressiva em direção ao inevitável. No fim de março, nos perguntávamos quando chegaria entre nós o pico da epidemia e quão severas seriam as suas consequências, que haviam se agravado pela imagem da segunda onda representada pelo colapso econômico. No filme de 1995, a origem do surto está em alguma república de bananas; em nossa história real ele se origina em uma cidade de 11 milhões de habitantes, na segunda maior economia do mundo.
A principal história que acabamos por contar no livro foi a de como o vírus SARS-CoV-2 e a doença a ele associada, a COVID-19, infiltrou-se em nossas vidas. Ao mesmo tempo, o livro apresenta o paradoxo de um presidente fake, ou seja, que não reconhece e trabalha para destruir o sistema democrático no qual foi eleito – ser desafiado pela realidade incontornável de um vírus e a doença que ele provoca.
Nosso objetivo foi apresentar uma modesta e fragmentária compreensão cronológica, entrecruzando subjetividade e objetividade, dessa triste e catastrófica experiência histórica que estamos vivendo. Procuramos pensar para além da agitação atualista, a fim de analisar as possibilidades do nosso futuro próximo, durante e após essa emergência. Mas, também, refletimos sobre o nosso presente imediato, sobre a catástrofe vivida, em especial, no Brasil, já que aqui o poder simbólico e real do vírus foi potencializado pela presença do presidente Bolsonaro.
A esse tempo agitado e confuso em que a informação nos entretém sem nos orientar, chamamos de “atualismo”. A capacidade de agitar, sem orientar ou desvelar, desse fluxo de notícias tem sido bem explorado pelas direitas globais. A explosão de notícias em fluxo contínuo, em que o valor de verdade parece ser confundido com o valor de novidade ou atualização da informação recebida, impede a cidadania de tomar consciência de seus reais interesses e formar um senso compartilhado de realidade que permita a ação política emancipadora. Essa estrutura, impede, muitas vezes, que o passado, mesmo o mais recente, seja trazido à reflexão. Por isso, políticos atualistas como Trump, Boris Johnson e Bolsonaro, em geral, não admitem erros, mas, simplesmente atualizam suas narrativas e afirmações quando as anteriores se tornam insustentáveis. Muitas vezes, os seus discursos mudam em função da conveniência da atualidade, sem a mínima necessidade de se prestar conta da negação da realidade do dia anterior. Fato que contribui para a dispersão e distração que se fantasiam com as roupas do jornalismo. Esses líderes se assemelham a apresentadores de shows de variedades, só que, nesse caso, os shows apresentados são perversos e sombrios. São shows de horrores.
O passado e o futuro são mobilizados, muitas vezes, nesses discursos e práticas, como dispositivos para a agitação política. Mas isso não significa que não existam projetos de passado e futuro nos movimentos políticos atualistas, representados tão bem por esses líderes. O caos é apenas uma cortina de fumaça, assentada numa complicada realidade do passado histórico, muitas vezes idealizado. Uma de suas consequências é a mobilização política em prol de presentes-passados, passados-presentes e presentes-futuros autoritários, na maioria das vezes, incitada pela negação, pela nostalgia e pelo ressentimento. E, talvez, o principal projeto de futuro desses movimentos seja a destruição ou, pelo menos, o enfraquecimento das bases da Democracia e do Estado Liberal.
Por tudo isso, o almanaque, uma das formas mais tradicionais de organização do passado, volta a ter uma função crítica importante. Nesse exercício de história imediata, os primeiros 150 dias da pandemia estão organizados por quinzena, acompanhando um dos tempos que organiza o ritmo da crise, já que o vírus pode levar até duas semanas para se manifestar. Na segunda parte do livro, apresentamos nossa leitura reflexiva, mais verticalizada e em forma de crônica, de alguns fatos que ocorreram durante o encontro do presidente fake com o vírus real. E, na terceira parte, abrimos e destacamos alguns dos assuntos mais recorrentes do período, que podem ser lidos de forma isolada ou podem ser entendidos como aprofundamento informativo, como hiperlinks, de temas tratados nas duas primeiras partes.
Ao navegar por esse almanaque, acreditamos que você, leitor ou leitora, poderá reviver e pensar sobre os momentos em que a pandemia, causada pelo coronavírus, deixava a sua condição latente para se tornar o evento reorganizador de nossas vidas em sua articulação com a crise das democracias liberais.
Queremos entender como dois grandes países, no caso, o Brasil e os Estados Unidos, divergiram da OMS e, mesmo assim, os seus líderes continuaram no poder de forma mais ou menos estável. Se não estáveis, apoiados por pelo menos um terço de sua população. Como entender esse escândalo?
Ao final dessa jornada, vemos a evolução catastrófica da pandemia no Brasil e nos EUA, com a perspectiva crescente do número de mortos e consequências sociais devastadoras para os grupos minorizados. Quem acompanhar nossa narrativa poderá perceber como o governo brasileiro se alinhou com alguns outros poucos países em que a política pública divergiu programaticamente daquilo traçado pela OMS. Ainda assim, a popularidade de Jair Bolsonaro não foi, até agora, substancialmente atingida. Ficamos com a sensação de que estamos contando a história de como o regime de verdade, que sustentava as democracias ocidentais, foi severamente comprometido nesses países.
A nossa hipótese é a de que, em certas dimensões da temporalidade atualista em que vivemos, a verdade que mais importa é aquela que nos chega na forma de notícia, de news. A maior parte das pessoas formam opinião orientadas por um ambiente de notícias em fluxo contínuo, consumido como entretenimento, embaladas pela crença de que quanto mais recente e atual é a notícia, mais relevante se torna para nossas vidas. Controlar a produção incessante das news – pouco importa se verdadeiras ou simuladas (fakes) – tornou-se a mais importante fonte de poder político, até mais relevante do que partidos e outros sujeitos políticos tradicionais. Esse universo paralelo, da simulação da notícia como arma política, com seus agentes e estruturas, é o fato mais relevante para compreendermos a história da COVID-19. Ele é o hospedeiro em que o bolsonarismo, e também o trumpismo, parasita em simbiose. Mas, como se verá, os níveis de insanidade do bolsonarismo e de Bolsonaro parecem ser insuperáveis.
Ao longo desse período, escrever foi para nós uma forma de lidar com a pandemia e com a crise política e econômica. Um ato de resistência e de conhecimento. Procuramos, assim, trabalhar com as dimensões positivas do atualismo, que em nosso livro, Atualismo 1.0, só estavam anunciadas. A atualização, em sentido próprio, se apresenta aqui como uma possibilidade de lidar de forma ativa e não reativa frente os acontecimentos e as notícias que vêm à tona. Portanto, ao invés de só repercutir, alargar e repetir incessantemente, fazendo reverberar ainda mais a agitação, propomos deslocar os eventos e as notícias com a força do passado e do futuro. Dessa maneira, esperamos que esse gesto contribua, a seu modo, para a construção de um outro tempo.
(*) Mateus Pereira e Valdei Araujo são professores de História na Universidade Federal de Ouro Preto em Mariana. São autores do livro Atualismo 1.0: como a ideia de atualização mudou o século XXI e organizadores de Do Fake ao Fato: (des)atualizando Bolsonaro, com Bruna Klem, e Mayra Marques é doutoranda em História na mesma instituição.
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