Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Finalmente, está instalada a CPI da tentativa de golpe de Estado do 8 de janeiro. Já há alguns meses que o tema está posto no Congresso Nacional, sendo alimentado pela oposição bolsonarista, convencida de que é possível inverter a narrativa e culpar o governo pelo que aconteceu.
Penso que o governo errou em investir tanta energia tentando barrar a CPI. O erro, talvez, traduza compreensão ainda equivocada da natureza do bolsonarismo.
“Bolsonarismo”.
Desde as eleições presidenciais de 2018, o termo passou a fazer parte do vocabulário político brasileiro. Manifestação radical do antipetismo, herdeiro do lavajatismo. Muito já se escreveu sobre o bolsonarismo, manifestação cultural que pauta a relação de parte significativa da sociedade brasileira com o poder.
Antes de ser movimento político, o bolsonarismo é fenômeno cultural.
O bolsonarismo veio pra ficar, já faz parte do ecossistema político nacional. Precisaremos aguardar as eleições municipais do ano que vem para conhecer com mais precisão o tamanho de sua força . Talvez já não seja tão forte quanto antes, mas está longe de ser irrelevante.
De onde vem a força do bolsonarismo?
Claro que a resposta passa pela liderança de Jair Bolsonaro, seu inegável carisma e sua capacidade de mobilizar afetos e despertar identificação num certo tipo social brasileiro. Acredito, porém, que a discussão vai além do personalismo do ex-presidente.
O bolsonarismo é resultado de certa experiência de crise na ordem democrática fundada no princípio da mediação institucional.
Explico.
A democracia representativa, necessariamente, demanda confiança na capacidade das instituições em mediarem a vontade política da sociedade civil. Congresso Nacional, Poder Judiciário, políticos profissionais eleitos, partidos políticos. Para que o sistema funcione, a sociedade precisa confiar que seus interesses estão sendo representados por essas instâncias.
É verdade que desde o século XIX a engrenagem é alvo de desconfianças e objeto de críticas, à esquerda e à direita do espectro ideológico. A ideia de “crise democrática”, portanto, não é exatamente uma novidade. Porém, hoje, a desconfiança se capilarizou de tal forma que o sistema democrático é tensionado em dimensão inédita.
Mal-estar social em virtude da precarização do trabalho, queda da qualidade de vida nas cidades, insegurança, violência urbana. Isso cria um ambiente de frustração e ressentimento que compromete estruturalmente a confiança na democracia representativa. As mídias digitais, que potencializam a crença na participação política direta, vêm se somar a esse cenário de amplificação da crise democrática.
A demanda é pela constante participação, pela total transparência, pelo acompanhamento em tempo real do processo político. Está exatamente aqui a força do bolsonarismo: a enorme habilidade de usar as mídias digitais para transformar a política institucional numa espécie de reality show.
Essa é, também, sua fragilidade.
Com um smartphone na mão, o político bolsonarista alimenta seu público com frases de efeito facilmente digeríveis, simplificando temas complexos, criando a sensação da constante participação.
Assim, o cidadão desconfiado com a mediação se sente, de fato, protagonista, parte do processo político. Impossível negar que o método tem sua eficiência. Tem também suas fragilidades, e isso fica evidente na trajetória de derrotas do bolsonarismo no plano da política institucional. Foi derrotado quando era governo e está sendo derrotado agora, na oposição.
É que mesmo em crise, a democracia representativa ainda conserva certa capacidade de sobrevivência, como demonstram a vitória de Joe Biden, nos EUA, e de Lula, aqui no Brasil.
Ambas as eleições serviram como referendos, onde a própria democracia representativa estava sendo julgada. Com todas as dificuldades, o veredito popular foi favorável ao sistema.
Depois de experimentar a subversão à ordem democrática com Trump e Bolsonaro, nos dois países, a maioria decidiu que, apesar de tudo, era melhor retornar à normalidade democrática, ou algo próximo a isso.
Pelo menos por ora, a democracia representativa sobreviveu ao estresse provocado pelo trumpismo e pelo bolsonarismo, mantendo seus ritos e procedimentos. O trumpismo vem demonstrando certa capacidade de institucionalização. O bolsonarismo não.
Quem acompanha as rotinas legislativas percebe que por trás da gritaria e do lacre digital, os parlamentares bolsonaristas são atrapalhados, inábeis no trato com o regimento e com as rotinas do Congresso. A oposição que prometia inviabilizar o governo parece cada vez mais isolada.
O próprio Arthur Lira já se descola do bolsonarismo. O blocão criado em 12 de abril isolou o PL, que apesar de ter maior bancada do Congresso, está caminhando sozinho, o que é sempre perigoso, na política e na vida. O chefe Valdemar deve estar bem preocupado, e um tanto arrependido de algumas escolhas recentes.
A própria CPI se mostra uma grande trapalhada. A conspiração caricata com a CNN e a insistência na abertura da comissão evidenciam as dificuldades do bolsonarismo em ler adequadamente o texto da política institucional. Se o objetivo era culpar o governo pelo que aconteceu em 8 de janeiro, o resultado pode ser a aceleração da responsabilização penal de lideranças bolsonaristas, sobretudo Anderson Torres e o próprio Jair Bolsonaro.
O terraplanismo político pode até ser capaz de manter mobilizada a base bolsonarista nas mídias digitais, mas é frágil no campo da política institucional, onde o jogo do poder, de fato, acontece.
Sintoma direto da crise democrática em curso no Brasil e no mundo, o bolsonarismo tem seu calcanhar de Aquiles exatamente onde tem sua força.
O poder do lacre não é proporcional ao poder efetivo. Não deixa de ser boa notícia.