A filosofia da destruição da educação pública

Dirce Waltrick do Amarante*

As eleições municipais se aproximam, e, no nosso país, este é um dos momentos em que a educação ganha protagonismo e prioridade, pelo menos no discurso — na prática, porém, tão logo a contagem de votos termina, quem vence costuma ter outras prioridades, como, por exemplo, manter a governabilidade, que depende mais do “humor” do mercado, dos “assaltos” dos opositores políticos, das “posturas” de categorias fortes (a do judiciário, dos parlamentares…), do que da “labuta” dos servidores da educação. 

Com o fim da corrida eleitoral, a educação e seus trabalhadores voltam à insignificância, contudo, se mesmo sabendo disso ainda ousam reivindicar algo, logo se tornam párias ou bodes expiatórios, sofrendo acusações injustas.  Professores de instituições públicas de ensino superior, não faz muito tempo, foram chamados de “zebras gordas” por um dos ministros da educação de Bolsonaro, Abrahan Weintraud.  Ainda hoje há quem diga que existem plantações de maconha nas universidades federais, e que a droga seria usada para fins recreativos. Esse discurso difamatório e absurdo é lugar comum entre a extrema-direita, de olho nas escolas cívico-militares e na privatização do ensino público, entre outros interesses políticos e econômicos.    

Discurso semelhante parece estar sendo reproduzido agora, em uma época tão difícil para as universidades e institutos federais, por autoridades e jornalistas em textos imprecisos e generalizantes. 

Um jornalista chega a afirmar que só houve greve nas universidades federais no governo do PT. O recorte temporal é bastante específico, talvez para facilitar seu discurso e suas conclusões, mas bastaria uma rápida consulta ao Google para verificar que as greves nas universidades federais não começaram neste século nem ocorreram apenas nos governos petistas. O jornalista também poderá verificar que, desde sempre, na história da nossa educação, se houve um mínimo de avanço na carreira docente isso só ocorreu depois de longas greves, as quais, convém reconhecer, são desgastantes tanto para alunos como para os próprios professores e outros servidores públicos:  Histórico das greves das e dos docentes das IFES – SINDCEFET-MG | Sindicato dos Docentes do CEFET-MG (sindcefetmg.org.br)

A propósito, mesmo no governo de extrema-direita houve, servidores da educação aderiram a paralisações, com muita coragem. 

O que diferencia as greves que foram deflagradas antes do primeiro governo Lula consiste nisto: naquela época, essas instituições de ensino federal eram frequentadas praticamente pelos filhos da burguesia. Com a política de cotas e ações afirmativas, esses espaços não são mais, atualmente, frequentados exclusivamente pelos privilegiados economicamente. A burguesia pode contar, aliás, com universidades particulares que oferecem cursos exclusivamente online, os quais lhes garante o diploma na data contratada.

Alguns, contrários à greve docente, resolvem colocar a culpa nos sindicatos que representam a categoria e, assim, obscurecem o problema em si. Uma dessas vozes contrárias à greve lembra que “os professores são representados por dois sindicatos que não se entendem, um petista (Proifes), outro mais à esquerda (Andes)”.  Eis uma questão bastante curiosa: como é possível um sindicato petista (Proifes) negociar com o partido que ele representa, o PT? Esse sindicato, portanto, não fala pela categoria, mas é o próprio governo: o que o Proifes faz é reproduzir a política dos patrões. O Andes não é “mais à esquerda”, o que acontece é que esse sindicato luta, de fato, junto com a categoria, e não contra ela, pela melhoria da educação nacional.

Por isso, parece óbvio que o Ministério da Gestão, petista, tenha acertado “um acordo com o Proifes (reajuste salarial e fim da greve)”, como afirma o jornalista. O Andes, que representa um número muito maior de universidades, reivindica, além do reajuste salarial, a recomposição orçamentária das universidades etc.

Outra “curiosidade” é que, talvez pela primeira vez na história deste país, o discurso da extrema-direita e o do PT parecem ser o mesmo: o de não querer gastar com a educação pública. Tanto a extrema-direita quanto o PT desejam autoritariamente o fim da greve, mas, ao agirem assim, parecem visar o fim das universidades públicas, pois dinheiro para elas não há. As universidades federais estão literalmente caindo: prédios precisam de manutenção! Uma visita a uma universidade pública talvez fizesse muitas pessoas contrárias à greve mudarem seu discurso.

“Dinheiro público pode ser assim tratado?”, perguntam muitos ao se referir apenas aos servidores da educação em greve. Teriam esquecido do legislativo, do executivo e do judiciário, que também são pagos, e bem pagos, pelos contribuintes? Por que tantas benesses para essas categorias, tantos dias de férias, tanta ociosidade? Talvez eles possam responder.

 Um professor titular (no fim da carreira, com mestrado, doutorado etc.) ganha líquido dezesseis mil reais (R$16.000,00). Qualquer jornalista especializado em economia pode fazer um cálculo: se descontarmos desse valor aluguel, transporte, saúde, alimentação, produtos de higiene e (pasmem!) material para ministrar aulas, quanto sobra para o trabalhador? Quem faz concurso não assina “atestado de pobreza”. Qual professor poderá comprar a casa própria ideal com esse salário? Como poderá guardar dinheiro para pagar a previdência privada? Ah, mas mesmo assim não pode comparar o salário dele com a média dos salários dos brasileiros, daí é fácil. Que tal comparar com as categorias mencionadas acima? É bom recordar que a maioria dos professores fez concurso e seu regime de trabalho é de dedicação exclusiva (como juízes, promotores, delegados), ou seja, não podem ter segunda fonte de renda (nem daria tempo).

Há quem acuse que “grevistas costumam culpar a imprensa por deixar de lado o noticiário a respeito. Engano. O assunto desaparece também das esferas políticas”. O fato é que tanto a imprensa quanto o governo deixam em geral o assunto das greves nas federais de lado. De modo que os grevistas não culpariam a imprensa à toa. Se bem alguns artigos colocam a greve em destaque em um grande jornal, para, infelizmente, advogar o fim dela, sem qualquer acordo decente para a educação pública. 

A respeito do seguinte questionamento — “quantos milhares de alunos perdem as formaturas e, pois, empregos?” –, a discussão é longa e complexa. Estamos diante de outro paradoxo: seguiremos formando alunos em universidades sem a menor infraestrutura ou lutaremos agora para que elas melhorem e ofereçam a todos a melhor formação possível? Se os filhos da burguesia ainda fossem maioria nas universidades públicas, será que o discurso do jornalista seria esse?  

Por que o governo não controla as contas cortando subsídios de empresas privadas? O dinheiro é curto, saúde e educação vêm em primeiro lugar, ou deveriam vir. Mas não, para alguns, os professores querem apenas “mais salário e mais dinheiro do governo, quando há grave dificuldade nas finanças públicas, com déficits e aumento de dívida pública já contratados. O momento é de reduzir gastos e ganhar eficiência”. Esse discurso chega tarde demais, poderia ter sido feito quando outras categorias tiveram aumentos e regalias. Por que a educação vai pagar o pato?

Alguns jornalistas parecem também desconhecer completamente como se estrutura a carreira de professores e funcionários das universidades e institutos públicos quando afirmam que professores e funcionários, no geral, não querem conversar sobre ganhos de produtividade, avaliação de desempenho e mérito para subir na carreira. Talvez valesse a pena conhecerem a tabela de pontuação e de obrigações que esses servidores precisam cumprir a cada dois anos, se quiserem subir na carreira e ganhar um aumento de uns míseros duzentos reais (RS 200,00). Talvez valesse a pena saber que esses servidores extrapolam horas extras, mas não ganham por elas. Aliás, muitos professores com projetos importantes precisam afirmar que dedicam zero hora de trabalho a esses projetos para não extrapolar o máximo de horas humanamente permitidas.  Talvez saibam que a carreira de professor universitário se assenta num tripé: pesquisa, ensino e extensão (aliás, quadripé, se considerarmos também administração).

 “Muitos servidores compreendem que as federais precisam de uma profunda reforma administrativa e pedagógica”, alguns afirmam, sim, isso é certo. É preciso reestruturar a carreira, é preciso apoio para a pesquisa, o ensino e a extensão. É preciso valorizar esses servidores, o que implica necessariamente levar em conta o seu contracheque e as verbas destinadas às instituições de ensino público.  

 Os que “tentam manter seus cursos funcionando” sabem que estes não funcionam como deveriam, mas “simplesmente deixam pra lá. Não vale a pena brigar ou não há condições”, porque já perderam a esperança, situação reforçada por alguns textos publicados em jornais de grande circulação nacional.

“Nesse ambiente, ninguém ousa dizer que o ensino superior federal precisa obter fontes de renda, em alta escala, no setor privado”, aconselham outros. Quem estudou filosofia, por exemplo, talvez possa explicar como vender reflexão, principalmente nos dias de hoje, e a que preço. Aliás, os cursos de engenharia, para mencionar um exemplo, costumam trabalhar com empresas privadas, que dão algumas migalhas para as universidades públicas em troca de mão de obra barata. 

“Segue em curso um cuidadoso trabalho de destruição das universidades federais”, a começar por artigos ligeiros que são publicados sem o cuidado necessário para tratar do tema. 

*Professora de Artes Cênicas da Universidade Federal de Santa Catarina e grevista.

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