A esquerda retomou as ruas

As 600 entidades que organizam as manifestações mudaram o eixo e o “ethos” da esquerda, até então partidária e parlamentar
Foto de Fernando Rabelo

Rudá Ricci, cientista político e presidente do Instituto Cultiva

As manifestações de sábado foram mais potentes que as duas anteriores. Os organizadores citam 800 mil manifestantes em pouco mais de 300 cidades. Tudo foi organizado em pouco mais de uma semana, já que a decisão inicial era da manifestação ocorrer em 24 de julho. Os manifestantes estavam mais confiantes. Estampavam cartazes e bonecos mais agressivos em relação ao governo Bolsonaro e, agora, a Arthur Lira. Já aparecem performances que exigem mais planejamento, como os cartazes dos familiares mortos pela COVID estampados nas ruas de João Pessoa.


Mas, o mais impressionante é que as ruas estavam tingidas de vermelho. A esquerda retornou às ruas. Nas ruas e nas redes sociais. Não a esquerda partidária, mas uma mais aguerrida, menos comprometida com grandes frentes focadas na próxima eleição ou no campo institucional. Há uma diferença importante em relação à proposta “republicanista” em que se parte do princípio de que as cores da esquerda assustam um liberal aliado. Os liberais já fizeram seu estrago no Brasil. Não que não estivessem ontem. O PSDB paulista estava na Paulista portando suas bandeiras. Desta vez, teve até o incidente protagonizado pelos militantes do Partido da Causa Operária (PCO) que partiram para a agressão contra tucanos, aos gritos de “fascistas”. Um erro. Um erro que não deixa de revelar o clima de retomada das ruas pela esquerda.

Vale recordar que parte desta esquerda esteve em 2013 e voltou às ruas no segundo semestre de 2016 e primeiro de 2017. Em abril de 2017, o movimento sindical emplacou a maior greve geral da história brasileira. Mas, a esquerda partidária sempre retornava ao republicanismo e à sua agenda prioritária: as eleições seguintes. Eleições seguintes que elegeram Bolsonaro emoldurada pela prisão de Lula.

Se é hora da esquerda partidária se reposicionar e redefinir seu calendário – afinal, não estamos em 2022 -, também parece ter chegado a hora do amadurecimento político desta outra esquerda, a que vem liderando as manifestações desde 29 de maio. Ela é composta por mais de 600 entidades: são muitas frentes como Povo Sem Medo, Frente Brasil Popular, Fórum Democrático de Liberdades, Frente Povo na Rua, Luta Popular Socialista. E fóruns de bairros Fora Bolsonaro que vão surgindo. Todas essas frentes reúnem militantes, entidades, sindicatos e partidos, movimentos sociais, indígenas, “verdes”.

Para mim, a partir de agora demonstraram que se não são explicitamente, já são na prática uma nova direção política, à esquerda, do país. A unidade das 600 entidades demonstrou capacidade de coesão, de enraizamento pelo país todo, demonstrou forte legitimidade na definição das palavras de ordem e convocação das manifestações. Soube fazer a leitura política e arriscou ao convocar as manifestações de sábado, mesmo mantendo a de 24 de julho. Com isso, começaram a diminuir o intervalo entre uma jornada de protestos e a seguinte. O que revela que decidiram criar a “onda” de envolvimento emocional e espírito de luta que vai envolvendo a população brasileira.

Agora, não dá simplesmente para repetir o que foi feito na manifestação passada. É preciso continuar dirigindo este movimento oposicionista majoritariamente de esquerda. Uma esquerda popular, fincada em organizações populares, não acovardada e sem os vícios parlamentares de falar muito e agir pouco.

As 600 entidades que organizam as manifestações mudaram o eixo e o “ethos” da esquerda, até então hegemonicamente partidária e parlamentar. Mudaram os rostos estampados nas redes sociais, as consignas e o ânimo.
Agora, é hora de dizer que Brasil queremos e não apenas o que não queremos.

Chegou a hora da crisálida virar borboleta.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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