A esquerda e o fetiche do crescimento econômico

Quando a esquerda não aprende com os próprios erros, a impressão que fica é que ela não entende os erros como tais.

O governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), atuou, praticamente, como lobista de mega corporações, acusadas, inclusive, de grilagem de terra, no caso que envolve a comunidade do Cajueiro, para acelerar a construção do terceiro porto privado no Estado com investimento de R$ 1,5 bilhão. Além das suspeitas de aquisição ilegal da área de, aproximadamente, 600 hectares, pela TUP Porto São Luís, o Ministério Público Federal também investiga a celeridade com que foi concedida a licença ambiental pela Secretaria Estadual do Meio Ambiente do Maranhão.

Eu só fui conhecer essa história na segunda-feira (23), durante o programa Roda Viva, e fiquei espantado com a postura protocolar do governador do Maranhão, que já foi juiz e é filiado a um partido que se diz comunista.

Segundo reportagem do Brasil de Fato, publicada no dia 12 de agosto, o juiz Marcelo Oka emitiu uma liminar de reintegração de posse a favor da empresa – uma sociedade entre A CCCC (China Communications Construction Company), maior empresa chinesa de infraestrutura, com 51% do capital, e a empreiteira brasileira WTorre – permitindo a remoção e destruição das casas, numa área onde residem 500 famílias que vivem da pesca artesanal, da agricultura familiar e do extrativismo e veem seu modo de vida tradicional em risco pela construção do empreendimento bilionário, que irá destruir a fauna e flora local, dando lugar a transatlânticos para o escoamento da produção do agronegócio.

Entrevistado pelo Brasil de Fato, Rafael Silva, advogado da Comissão Pastoral da Terra, explicou porque a decisão é ilegal: “em 2014, uma ação civil pública movida pela defensoria pública do Estado, inclusive com sentença judicial, garantiu a posse em benefício dos moradores do Cajueiro contra qualquer ato que beneficiasse a empresa. Contudo, a empresa entrou com outra ação concessória. Então, existe uma liminar que a beneficia emitida em julho de 2019. Mas, é preciso que se entenda que são decisões conflitantes. Dois processos diferentes. Agora, há recurso no Tribunal de Justiça do Maranhão para que ele defina qual é o campo de cumprimento da decisão a ser priorizado. Sem esse esclarecimento judicial não temos como aceitar um cumprimento de uma reintegração de posse violenta, irreversível, seletiva, por parte do governo do Estado do Maranhão para beneficiar uma empresa bilionária. As famílias não foram sequer informadas da data exata do cumprimento da operação. É um absurdo”, disse o advogado.

Na entrevista do Roda Viva, a repórter da BBC Brasil Mariana Schreiber questionou o “imbróglio jurídico” de caráter liminar, que na prática se torna irreversível, uma vez que as casas já foram colocadas abaixo, mas Flávio Dino se limitou a tentar isentar o governo e lamentar a decisão, afirmando que não poderia deixar de cumprir uma ordem judicial, como de fato não poderia. Uma postura diferente de quando analisa, por exemplo, as ilegalidades cometidas na Operação Lava Jato e nos julgamentos do então juiz Sergio Moro, hoje ministro do presidente Jair Bolsonaro, que acabou por causar danos irreversíveis a pessoas e ao país por meio de processos de primeira e segunda instância, como destacou o próprio governador no programa. Por que, então, ao menos, não questionar publicamente a decisão liminar, uma vez que outra sentença garantia os direitos dos moradores que se perderam permanentemente graças a essa decisão provisória? Os interesses de um governante são conflitantes com os entendimentos de um juiz de direito?

No dia 9 de setembro, menos de um mês após a reintegração de posse, e antes que eu conhecesse este caso, Fernando Haddad entrevistou Flávio Dino, e achei muito estranha a primeira pergunta que se referia aos portos, estradas, oportunidades de negócio e desenvolvimento regional. Geralmente, numa entrevista, as primeiras perguntas são de apresentação e abordam temas que estão na pauta do dia, deixando questões mais técnicas e complicadas para serem feitas ao longo da conversa. A resposta foi um show de desenvolvimentismo, falando em “hub logístico”, relatando os bilhões em impostos, as oportunidades de geração de emprego e receita, citando duas vezes a construção de um “terceiro porto privado”, porém nenhuma palavra sobre a disputa judicial na comunidade do Cajueiro. Nem na pergunta, muito menos na resposta.

Na segunda pergunta desta entrevista, o ex-prefeito de São Paulo abordou o Acordo de Salvaguardas Tecnológicas da Base de Alcântara, que prevê a cessão da área para lançamento de foguetes e satélites para os Estados Unidos. O acordo coloca em risco a vida comunitária de 800 famílias, que podem ser expulsas de onde vivem há mais de três séculos. O governo Federal quer ampliar a área de 8 mil para 20 mil hectares e se recusa a dar a titulação definitiva das terras aos quilombolas, desrespeitando o documento assinado pelo INCRA em 2008 que garantiu 78,1 mil hectares da região para as comunidades locais e limitou o espaço da base aérea a 8 mil hectares.

Sem essa garantia jurídica, o destino das duas mil pessoas que vivem da pesca, agricultura e a venda de artesanato, pode ser o mesmo que das 312 famílias que foram deslocadas para agrovilas no interior do Maranhão cobertas por areia e solo infértil, em 1983, quando a base foi construída.

Mais uma vez, nem a pergunta de Haddad, nem a resposta de Flávio Dino levaram em conta a situação dessa comunidade, atendo-se apenas as oportunidades comerciais.

É incrível que o “progresso” do Estado do Maranhão e a luta para livrá-lo do atraso histórico representado pela família Sarney, seja feito à custa das comunidades tradicionais, que precisam resistir a cada governo que ali se instala para preservar suas culturas e tradições. Quem diria que caberia ao PCdoB destruir culturas de resistência.

Quando se aponta para o PT, acusando-o de abandonar a tarefa de conscientizar politicamente a população, apostando que as políticas sociais desempenhariam esse papel por si, a primeira coisa que me vem à lembrança é a construção de Belo Monte e o quanto eu fui defensor dessa obra. Na época, os resultados inéditos das políticas sociais, o pleno emprego, o crescimento econômico, a ascensão social, me levaram a acreditar que essa aposta traria alguns efeitos colaterais localizados, mas que a macropolítica e o pensamento estratégico para o desenvolvimento, naquele momento, eram mais importantes que o direito de pequenas comunidades. Quanto engano…

Não acuso o PT de atropelar a comunidade de Belo Monte. Considerando a história brasileira em construções de grande porte, nenhum outro governo negociou tanto e ofereceu tantas condições que foram colocadas à mesa, mas é fato que interesses, da ordem que for, se sobrepuseram aos direitos.

Na campanha presidencial de 2018, quando o PT lançou como proposta de governo a “transição ecológica para a nova sociedade do século XXI”, acreditei que, finalmente, o Partido dos Trabalhadores havia aberto os olhos para as demandas de parte importante da população, crítica à intransigência desenvolvimentista que caracterizou o governo Dilma Rousseff. Hoje, uma conscientização política, necessariamente, passa por uma conscientização ecológica, e parece anacrônico ou infrutífero imaginar uma sem a outra.

Interessante observar nesse ponto, que quem assumiu o discurso do nacional desenvolvimentismo nas eleições de 2018, foi Ciro Gomes, através do fortalecimento da elite industrial brasileira, uma ideia que retoma as velhas discussões marxistas dos anos 60, que apostava no desenvolvimento das burguesias nacionais como contraponto às políticas imperialistas das grandes potências. Mas, por ora, vamos deixar o Ciro para lá. A história do capitalismo moderno já mostrou que o mercado global é guloso demais para permitir patriotismos românticos. Mas, sem deixar de destacar que uma coisa são os investimentos em empresas públicas e estatais que geram riquezas para a sociedade como um todo, e outra, bem diferente, é o escoamento do orçamento público para financiar a iniciativa privada, que acaba girando o mundo e ficando no bolso do mercado mundial.

Falar no Ciro Gomes, no entanto, me lembrou uma outra história, o primeiro show de rock que assisti na vida, em 1986, na Praça da Sé, um showmício do PCB com mais de uma dezena de bandas de Heavy Metal. Foi a primeira vez, também, que vi um “comunista” discursar. Alberto Goldman se lançava para Deputado Federal na Assembleia Nacional Constituinte pelo Partidão. Nessa eleição, o PT, com apenas seis anos de vida, lançou Eduardo Suplicy para o governo do estado, mas vejam só, Goldman e o PCB preferiram apoiar Orestes Quércia, em nome do já citado desenvolvimento da burguesia nacional. Goldman não foi eleito, um ano mais tarde deixaria o PCB para integrar o MDB de Quércia e encerrou a carreira política filiado aos neoliberais tucanos.

O conceito de “esquerda”, que antigamente era definido pelas práticas políticas que favoreciam a emancipação da classe trabalhadora, hoje tem sido usado até por quem vota pela extinção dos direitos trabalhistas em nome do crescimento econômico, que na prática, tem ampliado as desigualdades sociais e condenado a maioria da população mundial a um estado de penúria, gerando uma valiosa reserva de mercado do baixo salário em favor das grandes corporações.

Como o próprio Fernando Haddad reconhece, os avanços sociais nos governos petistas, aliados ao enriquecimento crescente da elite financeira, aproximou a classe pobre da classe média, gerando pânico nesta última, com a perda dos pequenos privilégios, como contratar criadas domésticas, babás, e tendo que dividir espaço nos aviões com pessoas que eles julgam não serem merecedoras desse direito, pois uma vez que ascendessem socialmente, não se submeteriam mais às esmolas pagas pelos serviços que a classe média se recusa a fazer, qual seja, cuidar dos filhos e da própria higiene doméstica.

Portanto, crescer não basta, ou pior, no contexto ambiental que se encontra o Planeta, crescer significa mais plásticos, mais agrotóxicos, mais lixo, mais poluição, mais disputa meritocrática, menos florestas, menos tempo de vida humana na Terra.

O que minha percepção diz é que antes de pensar em crescimento econômico, precisamos de um projeto que pense a redistribuição radical das riquezas, construindo bens comuns de acesso coletivo e comunitário, sem que haja o aumento da produtividade de produtos que degradam o meio ambiente. Em vez de empresas de capital fechado, cooperativas agrícolas e industriais. Em vez de shoppings, parques. Em vez de escolas, espaços públicos de conhecimento. Em vez de igrejas privadas, espaços de confraternização e comunhão pela arte e o afeto. Em vez de lucro, renda. Em vez de herança, direito à moradia. Em vez de acúmulo, compartilhamento.

Em seu “Discurso da Origem da Desigualdade”, de 1755, Jean-Jacques Rousseau já dizia que “a propriedade privada introduz a desigualdade entre os homens, a diferença entre o rico e o pobre, o poderoso e o fraco, o senhor e o escravo, até a predominância do mais forte. O homem é corrompido pelo poder e esmagado pela violência”. Trinta e quatro anos depois, uma Revolução que se prometia popular, transformou as sociedades ocidentais, mas acabou sufocada por uma burguesia que nunca se dispôs a abrir mão dos privilégios. Mais oitenta e dois anos, e a Comuna de Paris, em um mês, foi exterminada pela mesma burguesia patrimonialista. As Revoluções Socialistas do século passado também deram seu jeito de se apropriarem dos bens do povo, que ficaram sob posse de Estados corruptos e autoritários. Hoje, quando Thomas Piketty lança seu livro “Capital e Ideologia”, 274 anos depois de Rousseau, mostrando que a “desigualdade é acima de tudo ideológica” e propõe um “socialismo participativo” para “superar o capitalismo e a propriedade privada”, cujo objetivo seja transformar a propriedade em “temporal” e “organizar uma circulação permanente dos bens e da fortuna”, percebemos que o sonho da “liberdade, igualdade e fraternidade” sempre estará vivo, e de nada vai adiantar a humanidade acumular trilhões e mais trilhões de dólares sem que o Povo da Terra tenha acesso a essa fortuna.

Este sonho não parece tão distante, considerando que existe um pré-candidato à presidência dos Estados Unidos dizendo coisas, não tão radicais, mas parecidas, e considerando que a grande maioria dos jovens americanos, até 35 anos, se dizem socialistas. Donald Trump não diria, ontem (24), na ONU, que “os Estados Unidos jamais serão um país socialista”, caso isso não fosse uma possibilidade.

Apostar no crescimento econômico, sem que haja um projeto claro e radical de redistribuição das riquezas produzidas pelos humanos, é o que fazem e fizeram ao longo de dois séculos os economistas mais servis que nossas universidades já criaram. E o resultado dessa armadilha econômica é um mecanismo perverso que se retroalimenta: para se combater a pobreza se diz que é preciso crescer, mas crescer sem distribuir, gera mais pobreza e desigualdade, realimentando a reserva do salário-esmola, onde ricos ficam mais ricos e pobres mais pobres e dependentes desse processo vicioso.

Apostar que um porto, construído e administrado por bilionários chineses para escoar grãos de soja transgênica, infestada de agrotóxicos, para alimentar porcos criados do outro lado do mundo, destruindo o ecossistema local, seja mais importante que a vida de uma comunidade que vive da agricultura familiar, da pesca artesanal e da preservação do ambiente onde mora, vai na contramão de tudo que tem me interessado em termos políticos para o Brasil e o Planeta.

As questões econômicas e os problemas eventuais que envolvem comunidades do Maranhão não podem ser pensados e solucionados pela mesma ótica, e com a fórmula pronta, com que se discutem as questões em São Paulo ou Curitiba.

Pensando dessa forma, não parece nada animador perceber que o projeto de país proposto por Flávio Dino e grande parte da esquerda brasileira se aproxime mais da concepção econômica e de mundo de FHC, Doria Júnior e Paulo Guedes, do que do pensamento que atravessa os séculos comprovando e propondo o que até Jesus Cristo pregava antes de ser crucificado. Dai ao Povo, o que é do Povo.

 

  • Gustavo Aranda é Jornalista Livre e documentarista. Dirigiu os filmes: “Tchau, Querida” e “Intervenção – Amor não quer dizer grande coisa”

  • Esta é uma opinião independente e não reflete, necessariamente, as opiniões dos Jornalistas Livres.

COMENTÁRIOS

4 respostas

  1. Excelente texto, algo para ser amplamente divulgado e salvo para futuras referências. Parabéns ao autor.

  2. Parece que o escritor ainda vive no passado e de nada soube o que vem acontecendo que vai contra “todos seus ideais” desde a última eleição. Impressionante o que o ódio faz com os humanos.

    1. Com certeza voce, Adrian, ama a soja transgência regada com sangue dos homens e do meio ambiente destruído. Belo ideal o seu! Moderno e avançado até ao abismo mais tenebroso. Mas, neste, já vivemos e isto o faz muito, muito, muito feliz! #ForaBolsonaroGenocida! #ForaApoiadoresDoGenocidaVendilhão!

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