A democracia não se barganha

Foto: Lina Marinelli/Jornalistas Livres

Nenhum passo atrás. O recado das ruas nesta quarta-feira deixou claro: o povo não vai negociar os direitos sociais e humanos conquistados, não quer lotear o pré-sal e não admite o ajuste fiscal às custas das políticas sociais. Para quem ocupou a avenida, Dilma fica e Cunha sai

Por Maria Carolina Trevisan, especial para Jornalistas Livres

São Paulo, a capital mais conservadora do Brasil, começou a quarta-feira, 16 de dezembro, com um ato de “Professores contra o impeachment e pela democracia”, na Faculdade de Direito do Largo São Francisco, cenário da resistência estudantil à Ditadura. Foi uma reação à manobra que deu início ao processo de impeachment da presidenta Dilma, perpetrada pelo deputado federal Eduardo Cunha (PMDB-RJ), presidente da Câmara dos Deputados. “O que está em jogo agora são a democracia, o Estado de Direito e a República, nada menos”, afirma o manifesto dos intelectuais, oficializado no evento.

 Screen Shot 2015-12-20 at 9.54.53 PM

Mas a expressão mais contundente desse contra-peso aconteceu entre a Avenida Paulista e a Praça da República, no centro da capital paulista. Cerca de 100 mil pessoas, segundo o Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST) e 55 mil, de acordo com o Datafolha, marcharam contra a tentativa de golpe. Cartazes e cantos de luta pediam a manutenção e o fortalecimento das políticas que favorecem a maioria da população brasileira, mas não privilegia a elite conservadora. Um contraste evidente em relação à demanda da passeata do domingo, 13/12, intitulado “Natal sem Dilma”, e rebatizado de “esquenta”, quando da iminência de seu fracasso.

Não se pode ameaçar a democracia, que custou a vida de tanta gente na nossa história recente. Por isso, as ruas cheias. O impeachment é um instrumento reservado para situações extremas, destinado a proteger o Estado de Direito. Não pode fazer parte de um jogo pelo poder. “Nós estamos lutando para acabar com a história de golpes durante a democracia brasileira”, afirmou a professora Ermínia Maricato, da Faculdade de Arquitetura e Urbanismo da USP. “Nós estamos lutando também para avançar no processo civilizatório. Por um processo civilizatório de generosidade, de paz, de uma sociedade menos desigual. Estamos lutando contra muita coisa, mas a favor de muita coisa também”, disse Maricato.

Foi exatamente o que se viu no ato contra o golpe nesta quarta-feira: milhares de pessoas defendendo as políticas sociais e os direitos humanos, sobretudo. Gente comum, que não é filiada a nenhum partido político, se misturava a militantes de direitos indígenas, a defensoras dos direitos das mulheres, a ativistas do movimento LGBT, aos que lutam por moradia digna, por escolas públicas de qualidade, aos integrantes do movimento negro.

 

Lucia Udemezue e Patricia Rodrigues | Foto: Fernando Cavalcanti/Jornalistas Livres

Querem evitar o retrocesso e garantir avanços. “Um golpe significa retroceder mais de 50 anos de luta histórica pela democracia no país, retroceder em direitos que avançaram em grande medida em 12 anos de governo democrático e popular. Precisam ser respaldados”, defende Patrícia Rodrigues, socióloga e militante pelos direitos indígenas. É a população em situação mais vulnerável — indígenas, negros e pobres — quem mais perderia com uma mudança autoritária de governo à direita.

“A questão racial no Brasil apesar de todas as dificuldades persistentes, experimentou avanços nos últimos anos justamente porque encontrou lugar nas bases dos partidos de esquerda, embora estes também apresentem grandes restrições para tratar da pauta. O fato é que a conquista de direitos trabalhistas para trabalhadoras domésticas, a maioria de mulheres negras, a inserção de pessoas negras nas universidades, a disputa com cotas a cargos públicos, tudo isso tem incomodado demais aqueles que nunca tiveram como pauta os direitos para esse segmento populacional”, explica a socióloga Tricia Calmon, militante do movimento negro da Bahia.

“Pensar e implementar políticas para o segmento populacional negro no Brasil fortalece a democracia na medida em que aos poucos vai desmontando o monopólio do usufruto dos bens produzidos pela sociedade apenas pelo segmento populacional branco. Um golpe, portanto enfraquecerá esse projeto”, afirma.

 

Foto: Roberto Setton/Jornalistas Livres

Escuta, Dilma

Um outro aspecto importante da passeata pela democracia desta quarta (16/12) foi marcado por críticas severas ao governo. “Ser contra o impeachment não significa defender a política desse governo. Nós entendemos que essa política é indefensável. O governo Dilma precisa ouvir a voz das ruas. Se não interromper esse ajuste fiscal só vai aprofundar a crise e vai gerar grande revolta social”, alerta Guilherme Boulos, líder do Movimento dos Trabalhadores Sem Teto (MTST).

 

José Alves de Castro, militante histórico do PCdoB. Há 55 anos. Foto: Fernando Cavalcanti/Jornalistas Livres

Um ajuste fiscal baseado nos juros do pagamento da dívida externa e a defesa do pré-sal como patrimônio brasileiro foram bandeiras levantadas na manifestação. “Querem que o povo pague a conta. O Brasil está gastando 500 bilhões de dólares para pagar juros da dívida para os grandes investidores. É esse o verdadeiro ajuste que tinha que ser feito”, reivindica o jornalista Chico Malfitani. “Não é tirando 10 milhões do Bolsa Família. O ajuste é a sangria. Todos nós precisamos fazer alguma coisa para não deixar o país andar para trás. Ou vai ter uma guerra civil”, alerta Malfitani. Para a professora e filósofa Marilena Chauí, se o golpe acontecer, a tendência é a privatização da Educação, da Saúde e da Cultura. “E vão entregar o pré-sal para os Estados Unidos. O pré-sal é a nossa soberania”, defende.

 

Foto: Mídia NINJA

No mesmo instante em que a manifestação marchava em direção à Praça da República, o Procurador Geral da República, Rodrigo Janot, pedia o afastamento cautelar de Eduardo Cunha do cargo de deputado federal e de presidente da Câmara. Janot listou 11 razões para isso e encaminhou ao Supremo.

 

O médico Reinaldo Morano, 70 anos, participa da manifestação | Foto: Fernando Cavalcanti

Diante desse quadro político palpitante, o posicionamento popular é fundamental para desmistificar a ideia de que a maioria dos brasileiros quer o impeachment, cenário defendido por Cunha e companhia, e superdimensionado pela velha mídia. O contrário do que se viu nas ruas ontem. “Se você olhar, tem gente de todas as cores e tem muita gente”, observa o médico Reinaldo Morano. Participante do movimento estudantil nos tempos de terror da ditadura, Morano viu muita gente ser presa, perseguida e torturada, amigos e colegas assassinados. “Eu não quero isso de volta. Meu recado é ‘Dilma, coragem’!” A direita é insaciável.

 

Colaboraram: Laura Capriglione, Allan Ferreira, Henrique Cartaxo, Bruno Miranda, Katia Passos e Iolanda Depizzol

COMENTÁRIOS

POSTS RELACIONADOS