A cultura miliciana

No mundo em que ninguém confia em nada, corremos o risco de agir como os justiceiros de Copacabana
Soco inglês - Reprodução de redes sociais

Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

Nos últimos dias, os principais noticiários do país trouxeram informações a respeito dos “Justiceiros de Copacabana”: moradores que se reúnem em grupo e saem pelas ruas batendo em qualquer um que seja identificado como ladrão.

É o procedimento miliciano clássico, o mesmo que no final dos anos 1980 esteve na origem daquele que, hoje, é o principal drama na segurança pública no Rio de Janeiro e que se tornou socialmente difundido. O que venho discutir neste texto é que este tipo de iniciativa não se resume à ação armada. É, antes de tudo, fenômeno cultural, sendo um dos principais sintomas de nossa condição de época, um dos principais desdobramentos da crise democrática em curso no Brasil e no mundo.

Mas o que uma coisa tem a ver com a outra? Tudo! Explico.

Nas modernas sociedades de massa, não existe democracia sem mediação institucional. Diferente do que acontecia nas pequenas comunidades políticas na Grécia Antiga, na modernidade não é possível chamar todos os cidadãos à praça pública sempre que seja necessário deliberar sobre assuntos de interesse coletivo. Por isso, as instituições mediadoras são fundamentais, pois viabilizam a participação possível. Poderíamos até falar em “participação política indireta”, mas creio ser melhor falar em “participação política institucionalmente mediada”. É isso que define a democracia moderna.

Para que a mediação institucional faça sentido é necessário que exista confiança. O cidadão precisa confiar que o político profissional eleito representará seus interesses. Precisa confiar que a Justiça arbitrará seus conflitos de forma neutra e imparcial. Precisa confiar que as forças policiais são capazes de defender sua vida e propriedade. Precisa confiar naquilo que não pode experimentar com o próprio corpo, ou ver com os próprios olhos.

A democracia moderna não é funcional se os cidadãos não confiarem nas instituições mediadoras. A cultura miliciana, portanto, traduz o colapso da confiança na mediação institucional e é isso que está no centro da crise democrática contemporânea.

Não à toa falo em “cultura miliciana”, e não apenas em “milícia”, pois entendo que se trata de algo muito mais amplo e capilarizado na sociedade do que tão somente o tipo de organização paramilitar que hoje controla a metade do território do crime no Rio de Janeiro.

Os fortões de Copacabana que não confiam na Polícia se equipam de taco de beisebol, soco inglês e, por conta própria, abordam, julgam e punem os “suspeitos” de assaltarem pedestres; os militantes bolsonaristas que depredaram as sedes dos Três Poderes porque não confiam no processo eleitoral; os ativistas de esquerda que agem ao arrepio da lei, promovendo linchamentos públicos na internet porque não confiam nos ritos institucionais de apuração das denúncias envolvendo crimes de ódio.

Manifestações distintas de uma mesma condição cultural: a desconfiança na capacidade das instituições democráticas em mediarem a vida social.

No mundo em que ninguém confia em nada, a não ser na própria experiência concreta, todos corremos o risco de agir, em algum momento, como os justiceiros de Copacabana.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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