A criação da bancada negra e a armadilha da identidade

A deputada Benedita da Silva é uma das integrantes da bancada negra da Câmara - Foto de Vinícius Loures -Agência Câmara

Por RODRIGO PEREZ OLIVEIRA, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia

No último dia 1º, a Câmara dos Deputados aprovou a criação da “bancada negra”, grupo parlamentar supra partidário com o objetivo de reunir a representação legislativa preta na câmara baixa do Congresso Nacional.

A proposta foi apresentada pela deputada Talíria Petrone (PSOL/RJ) e pelo deputado Damião Feliciano (União Brasil/PB). O texto agora precisa ser promulgado por Arthur Lira para ser incorporado ao regimento interno da Casa, o que provavelmente acontecerá na próxima semana.

A bancada negra será formada pelos deputados que no momento do registro de suas candidaturas se autodeclararam pretos ou pardos. O grupo terá uma coordenação geral e três vices-coordenadores. Todos terão mandato de um ano, sendo escolhidos sempre no simbólico dia 20 de novembro.

O rosto mais emblemático do evento foi o de Benedita da Silva (PT/RJ), liderança política histórica em defesa dos direitos da população afro-brasileira. Em discurso emocionante, Benedita veio às lágrimas, dizendo “eu agora tenho uma bancada, eu agora tenho uma frente que vai dar continuidade a uma luta de séculos e séculos”.

Será mesmo?

Bené, como é conhecida lá pelas bandas da Guanabara, tem biografia inquestionável, uma gigante na luta contra o racismo. Mas nem todos os parlamentares pretos possuem as mesmas prioridades.

A criação da bancada negra é um grave erro estratégico. É uma armadilha!

Diferente da frente parlamentar antirracista, instaurada em abril sob a liderança da ministra Anielle Franco, a bancada negra não tem sua razão de existência fundada em uma agenda temática, mas, sim, na afirmação de uma identidade racial profunda e perigosamente essencializada.

Sim, estarão na bancada negra parlamentares progressistas e comprometidos com a luta antirracista, tais como as já citadas Talíria Petrone e Benedita da Silva.

Porém, estarão, também, parlamentares como Tia Eron (Republicanos/BA), Bispo Ossesio Silva (Republicanos/PE), Isidorio (Avante/Ba), Otoni de Paula (MDB/RJ), Hélio Lopes (PL/RJ), só pra ficar em poucos exemplos.

Não é difícil imaginar que, no âmbito da legislatura mais conservadora da história, a bancada negra será disputada por parlamentares acasalados com o atraso e dispostos a trabalhar contra os interesses da população negra.

Há o risco concreto de que a bancada negra confronte a frente parlamentar antirracista, esta sim, fundada em um tema devidamente delimitado.

Mas o que leva parlamentares progressistas como Talíria e Benedita a errarem desta forma?

É aqui que Asad Haider, intelectual estadunidense de origem paquistanesa e autor do livro “Armadilha da Identidade” (Veneta, 2019), nos ajuda. O prefácio do livro é assinado pelo ministro Sílvio Almeida. Recomendo muito a leitura.

Haider aborda criticamente a “política das identidades”, ou “identitarismo”, como costumamos falar aqui no Brasil.

O autor argumenta que ao fetichizar determinados corpos atravessados por marcadores específicos de raça e gênero, a política das identidades coloca em segundo plano aquilo que efetivamente esses corpos falam, aquilo que efetivamente fazem.

Ou em outras palavras, aplicando a reflexão de Haider ao objeto deste texto:

Mesmo que todas as pessoas pretas sofram o efeito do racismo, nem todas defendem as políticas públicas que combatem o racismo. Algumas até boicotam essas políticas, como já fizeram Sérgio Camargo e Fernando Holiday.

Isso acontece porque a consciência não é determinada pela cor da pele, pelo gênero ou pela religião. É determinada por experiências sociais e materiais concretas.

Uma mulher preta formada nas fileiras de um partido político progressista age na realidade de uma forma completamente diferente de uma mulher preta formada nos bancos de uma igreja evangélica neopentencostal, por exemplo. O fato de ambos os corpos compartilharem os mesmos marcadores de gênero e raça pode significar muito pouco.

A “armadilha” criada junto com a bancada negra é exatamente esta: é como se não existissem práticas e discursos, mas somente corpos racializados. Não importa o que o corpo fala e faz, mas, sim, o que ele é, ou o que se acredita que ele seja.

Quem ganha com a armadilha?

As forças do atraso, que há muito descobriram que também podem reivindicar um lugar de fala para chamar de seu.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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