“A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!”

A luta da Comunidade Tradicional Carroceira pelos direitos humanos e dos animais

Está em baila em todas as capitais, nas grandes, médias e em parte das pequenas cidades do Brasil, uma enorme pressão para proibir o trabalho dos/as carroceiros/as. Infelizmente, em várias delas já aprovaram leis proibindo o modo de vida carroceiro. Outras cidades estão resistindo. Em Porto Alegre, RS, algum tempo após a proibição do trabalho dos/as carroceiros/as, pesquisa da prefeitura apontou um crescimento do empobrecimento e vulnerabilidade social em milhares de famílias que perderam o seu ganha-pão.

Por Gilvander Moreira[1]

A pressão para se proibir o trabalho dos/as carroceiros/as é liderada, à primeira vista, por pretensos ambientalistas defensores dos animais, mas por trás também está o lobby das grandes empresas de caçamba com ganância para ampliar seus lucros e em tempos de crise garantir a acumulação de capital mesmo à custa do extermínio de modos de vida e cultura tradicionais. Em Belo Horizonte, MG, está na mesa do prefeito Alexandre Kalil um Projeto de Lei, o PL 142/2017, que após quatro anos de tramitação autoritária, sem nenhum tipo de diálogo com as comunidades afetadas, foi aprovado em 2º turno na Câmara Municipal de Belo Horizonte (CMBH) por 28 vereadores no universo de 41, dia 15 de dezembro de 2020 e agora espera a sansão ou veto finais. Em pleno cenário de pandemia, os/as carroceiros/as ficaram de fora do plenário, atônitos com tamanho absurdo e desrespeito. Tudo pareceu uma grande manobra. 

Estamos lutando para que seja vetado pelo prefeito Kalil o PL 142, que proíbe o trabalho dos/as carroceiros/as na capital mineira. O legítimo e justo é o veto por muitos motivos. Primeiro, porque se trata de um projeto autoritário, pois não ouviu os/as carroceiros/as e não teve participação popular. O ex-vereador Adriano Ventura, que era um dos autores do PL original, repensou e retirou o PL de tramitação, após descobrir que seria gravíssima violação dos direitos humanos fundamentais da Comunidade Carroceira e também não resultaria em bons-tratos para os cavalos, éguas, mulas e burros. Outro vereador, Osvaldo Lopes, agora deputado estadual, reapresentou o projeto que foi aprovado na CMBH. O PL 142 é uma expressão de racismo institucional e estrutural que permeia a guerra contra os pobres, pois matará aos poucos milhares de famílias que sobrevivem com o trabalho em carroças. O PL 142 é inconstitucional, porque viola os artigos 215 e 216 que garantem a diversidade cultural e também viola e desconsidera os tratados internacionais tais como a Convenção 169 da Organização Internacional do Trabalho (OIT), da Organização das Nações Unidas (ONU), que protegem os Povos e Comunidades Tradicionais. A Comunidade carroceira é Povo Tradicional, em Belo Horizonte, já com Auto-Declaração formalizada, o que confere valor jurídico.

O “Ofício de Carroceiro” é histórico e deve ser respeitado enquanto meio de transporte milenar e tradicional, bem como patrimônio biocultural e imaterial, o que implica em um profundo conhecimento ecológico por parte dos/as carroceiros/as e etológico dos cavalos relacionados aos saberes e às madeiras mais adequadas para fabricação das carroças, ao uso de plantas medicinais, às benzeções e outras formas de cuidado da saúde dos animais, bem como o manejo e a coleta de diversas espécies de gramíneas de crescimento espontâneo nas cidades que compõem parte da dieta oferecida aos cavalos. A carroça, que pode possuir vários formatos, tipos e desenhos, ao longo do tempo, constitui-se como artefato e memória tecnológica, que merece registro e inventário patrimonial. Os espaços de uso como ruas, lotes, descampados e seus trajetos constituem territorialidades da tradição carroceira e suas conexões sócio-espaciais. O modo de vida tradicional de carroceiros e cavalos também envolve formas especificas de sociabilidade, tais como as catiras e as cavalgadas, baseadas na reciprocidade e no parentesco, sendo muito comum ver três gerações de carroceiros juntas em uma carroça, constituída como espaço de resistência sempre em movimento. É sempre bom lembrar que muitos carroceiros em áreas rurais ou urbanas podem pertencer duplamente a categorias de outros povos tradicionais, tais como: Ciganos, Agricultores Familiares, Indígenas e Quilombolas.                 

A construção das cidades, mesmo as mais recentes, incluindo Belo Horizonte, capital de Minas Gerais, não teria sido possível sem o apoio contínuo dos/as carroceiros/as, transportando gêneros alimentícios para os operários, bagagens e mobiliário para os primeiros moradores, além de material de construção e de obras trazidos das estações dos trens.

Segundo o Sr. Sebastião Alves de Lima, presidente da Associação dos Carroceiros e Carroceiras Unidos/as de Belo Horizonte e RMBH, quando houve uma reunião com o Prefeito Kalil, em agosto de 2017, este teria prometido que jamais iria aprovar uma lei que prejudicasse os carroceiros em Belo Horizonte, pois ele reconhecia a importância destes na história do município. O próprio Kalil contou para os representantes dos carroceiros em reunião que ele estaria ciente de que, durante a Segunda Grande Guerra, quando faltou combustível para os caminhões, foram os/as carroceiros/as que levaram matéria-prima para obras de pavimentação na região central de Belo Horizonte.

Parece emblemático uma cidade que tem como nome primeiro “Curral del Rei” querer agora expulsar o que tem de mais genuíno em sua origem.  Segundo Alícia Penna, em 1711 já existia o Arraial do Curral del Rei, sendo seus habitantes denominados curralenses[1]; ainda nos resta parte da Serra do Curral que emoldura o cenário da capital.     

Se sancionado o PL 142, a proibição do trabalho dos/as carroceiros/as causará uma tragédia socioeconômica na capital mineira, pois todos os bairros fora do perímetro da Av. do Contorno, com exceção daqueles enriquecidos, necessitam do trabalho dos/as carroceiros/as, que têm uma função social imprescindível na cidade. Os bairros de classe baixa, populares e periferias não têm condições de pagar caçamba para recolher pequenas quantidades de resíduos, pois o custo é elevado e assim sendo a existência dos/as carroceiros/as ajuda a baixar o preço das caçambas. Nos bairros periféricos, em muitos lugares, não é possível um caminhão caçamba chegar, por causa de ruas estreitas, íngremes ou becos. Enfim, o PL 142 atende, dentre outros, ao lobby das grandes empresas de caçamba e matará aos poucos os cavalos e as famílias de cerca de 10 mil carroceiros/as existentes em BH e RMBH. Este número é estimado já que não foi feito ainda um censo que contemple esta categoria na região. A partir de pesquisa da UFMG, de 2010, estima-se a existência de 10 mil carroceiros/as em BH e Região Metropolitana. Como é possível proibir o trabalho dos/as carroceiros/as sem um censo, sem saber quantos são e qual sua realidade?  Sem os carroceiros/as, o preço das caçambas subirá muito, o que trará um grande impacto econômico para as famílias de classe baixa e popular.

O PL 142 tecnicamente é um absurdo, pois não existem estudos sérios que atestem a viabilidade de se substituir cavalos por motos, “cavalos de lata”, o que, além da impossibilidade técnica, aumentará a poluição sonora e do ar e o número de acidentes e mortos. Basta de uso de combustível fóssil na cidade!

A cidade que queremos passa pelo apoio aos/às carroceiros/as, que foram imprescindíveis na construção da capital mineira e de todas as cidades. O PL 142 não garante em nada “bons-tratos” aos cavalos, ao contrário, chega-se à hilariante proposta de “doação solidária”, ou seja, os melhores cavalos poderão ser adotados por pessoas ricas que, segundo alegam, teriam melhores condições de cuidar deles. Isso é cinismo, hipocrisia e covardia sem tamanho, pois, além de deixar de “mãos vazias” mais de 10 mil famílias carroceiras, sem acesso ao seu ganha-pão, ainda deverão doar seus animais para pessoas ricas.  É óbvio que existem casos de maus-tratos, mas não é a regra. Maus-tratos não se combatem só com proibição e repressão! Nos oito anos de governos municipais em Belo Horizonte, com os prefeitos Patrus Ananias e Célio de Castro, foi implementada uma Política Pública com a participação dos/as carroceiros/as, que envolvia a construção de 34 URPVs (Unidades de Recolhimento de Pequenos Volumes), emplacamento das carroças, expedição de carteirinha para os/as carroceiros/as, tudo isso em parceria com a Faculdade de Veterinária da UFMG, que vacinavam e ajudavam os carroceiros/as a cuidar dos animais. E também havia fiscalização. Porém, nos últimos doze anos foi desmantelada esta política pública, ao que tudo indica como uma estratégia  para suprimi-la mais à frente.  Exigimos o resgate dessas políticas públicas.

Enfim, essa tentativa de criminalizar o modo de vida carroceiro é resultado de uma postura colonialista, racista, etnocêntrica e higienista que busca impor sobre toda a sociedade uma única forma de se viver as relações entre humanos e animais.

“A cidade é nossa roça! Nossa luta é na carroça!”, eis o lema dos/as carroceiros/as na capital mineira. Apoiamos este segmento social na luta por políticas públicas sérias e idôneas, com participação popular e respeito aos modos de ser, viver e trabalhar das comunidades tradicionais das quais os/as carroceiros/as fazem parte. Jesus entrou em Jerusalém montado em um jumento. A burrinha de Balão foi profetisa. Fazemos ecoar aqui o canto de Luiz Gonzaga: “Respeite o jumento” e os/as carroceiros/as no seu modo de ser e de existir. Não adianta alegar que a PM cuida bem dos cavalos da cavalaria, porque além dos suspeitos treinamentos, que podem ser a duras penas, “cuidam bem dos cavalos, mas para fazer maus-tratos a outros: os pobres e negros das periferias que são tratados pior do que aos animais”. Qual o ritmo humano para a cidade que queremos: o ritmo lento dos cavalos que garante trabalho, renda e dignidade ou a correria dos automóveis e das pessoas com o ritmo frenético, agressivo, poluente e excludente baseado nos combustíveis fósseis? Essa luta é justa e dela ninguém pode se omitir.[2]

12/01/2021

             Obs.: Os vídeos nos links, abaixo, ilustram o assunto tratado acima.

1 – “Carroceiros/as é Povo Tradicional com cultura milenar. Kalil, VETE o PL 142”: Alenice Baeta-1/01/21

2 – Live – Carroceiros/as de BH: “Estão nos julgando sem nos conhecer. Kalil, VETE o PL 142”. – 30/12/20

3 – “Veta, Kalil, o PL 142 racista”, exigem os 10.000 carroceiros/as de BH e RMBH Vídeo 3 – 21/12/2020

4 – Carroçasso em BH: 10.000 carroceiros/as exigem que Kalil VETE o PL 142 racista. Vídeo 2 – 21/12/20

5 – Carroceiros/as na luta para que Kalil vete o PL 142, RACISTA: início do Carroçasso. Vídeo 1-21/12/20

6 – “A cidade é nossa roça. Nossa luta é na carroça.” Carroceiros/as, SIM! Por frei Gilvander – 20/12/20

7 – Pelos Direitos do Povo Tradicional Carroceiro e dos Cavalos e Éguas/Frei Gilvander/1ªParte-20/12/20

8 – Lei racista e que faz guerra contra 10.000 carroceiros/as foi aprovada em Belo Horizonte -16/12/2020

9 – Em BH, sancionar PL 142 autoritário sem participação dos carroceiros será injustiça. Vídeo 4 -7/1/21

10 – “Carroceiros em BH são necessários para solucionar o problema dos resíduos sólidos”. Vídeo 3 -7/1/21

11 – “Proibir carroceiros/as em BH é priorizar grandes empresas de caçamba.” Prof. Tiago. Vídeo 2 -6/1/21

12 – “FUNÇÃO SOCIAL dos/as carroceiros/as é imprescindível em Belo Horizonte” (Eduardo). Vídeo 1 -06/1/21

13 – “Quem aprovou o PL 142 para acabar com carroceiros/as em BH nunca passou fome.” Valdinalva. Vídeo 2

14 – Cigana Valdinalva – apelo emocionado, em BH: “Kalil, VETE o PL 142, pois é racista”. Vídeo1 –5/01/21

15 – “Há carroceiros ciganos. Direitos dos ciganos são violados no PL 142 em BH. Vete, Kalil”, diz Itamar

16 – “Pelos direitos dos Carroceiros, vereadores/as de BH, arquivem o PL 142” Prof. Emanuel/UEMG/14/12/20

17 – Grito dos carroceiros de Belo Horizonte contra o PL 142/2017: “Somos Povo Tradicional!” – 13/12/2020

18 – Luta de carroceiros/as de BH/MG: Trabalho e respeito aos cavalos e éguas. 6ª Parte. 07/7/2018.

19 – Luta dos carroceiros/as e cavalos em BH/MG: pelo direito de existir na cidade/5ª Parte/07/7/2018.

20 – Luta dos/das carroceiros/as pelo direito de trabalhar com cavalos e éguas/BH/MG. 4ª Parte/07/7/2018

21 – Carroceiros/as, cavalos e éguas em BH/MG: dignidade e sobrevivência, 3ª Parte. 07/7/2018.

22 – Carroceiros/as de BH/MG: Cuidado com o meio ambiente e respeito aos animais/2ª Parte/ 07/7/2018.

23 – Carroceiros e carroceiras de BH/MG: Respeito à cultura, direito ao trabalho. 1ª Parte. 07/7/2018.

24 – Carroceiros/as de Belo Horizonte PROTESTAM na CMBH contra a aprovação do PL 142 INJUSTO – 14/12/20


[1] PENNA, Alícia D. O espaço infiel: quando o giro da economia capitalista impõe se à cidade. Dissertação (Mestrado). Universidade Federal de Minas Gerais-UFMG, Belo Horizonte, 1997.

[2] Gratidão ao Prof. Emmanuel Almada, da UEMG, à Professora Alenice Baeta, do CEDEFES, e à Carmem Imaculada de Brito pela revisão do texto.


[1] Frei e padre da Ordem dos carmelitas; doutor em Educação pela FAE/UFMG; licenciado e bacharel em Filosofia pela UFPR; bacharel em Teologia pelo ITESP/SP; mestre em Exegese Bíblica pelo Pontifício Instituto Bíblico, em Roma, Itália; agente da CPT, assessor do CEBI e Ocupações Urbanas; prof. de “Movimentos Sociais Populares e Direitos Humanos” no IDH e de Teologia bíblica no SAB (Serviço de Animação Bíblica), em Belo Horizonte, MG. E-mail: [email protected] – www.gilvander.org.br – www.freigilvander.blogspot.com.br      –       www.twitter.com/gilvanderluis        –    Facebook: Gilvander Moreira III

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Defender a tração animal (carroças e similares) como justificativa para a necessidade de emprego e renda é uma visão simplista, míope e anacrônica:

    1– SIM, existem problemas sociais. MAS O QUE OS CAVALOS TÊM A VER COM ISSO? Esse é um problema para os humanos resolverem, não os cavalos. Transferir a solução do problema para um escravo inocente não resolve o problema. Criam-se outros. Por trás da degradante e anacrônica tração animal há trabalho infantil, evasão escolar, uso de drogas, proliferação de zoonoses, sujeira e descarte irregular de entulhos, acidentes de trânsito causados por cavalos soltos, etc…
    2 – se a solução dos problemas sociais é justificativa para qualquer tipo de atrocidade, então deveríamos voltar aos tempos da escravidão humana, que era justificada pela necessidade de renda dos senhores de escravos (na história da humanidade, várias etnias foram escravizadas (brancos, negros, índios…)? Ou devíamos liberar o tráfego de drogas porque muitos vivem dele?
    3 – para acabar com o desemprego era só dar um cavalo e uma carroça para cada desempregado então ???

    Cavalos se alimentam de restos de verduras podres de sacolões, a maioria são subnutridos, doentes, com ferimentos e bicheiras, trabalham em condições indignas e degradantes, transportam peso de entulhos incompatível com a sua nutrição, são criados soltos em áreas públicas, sao atropelados e causam acidentes.

    As pessoas que defendem esse tipo de escravidão são incapazes de perceber que a sensiência não é privilégio (ou castigo?) apenas dos seres ditos “humanos”. Animais também sofrem. E sofrem sozinhos, sem ter a quem recorrer.

    Estamos na era dos motores e é imoral e inadmissível que ainda utilizemos veículos de tração escrava para transporte de carga.

POSTS RELACIONADOS

Natal ontem e hoje, lá e cá

Por Frei Gilvander Moreira¹ Coragem! “Não tenham medo! Eu vos anuncio uma notícia libertadora, que será grande alegria para os povos: hoje, na cidade de