A Chapada Diamantina pede socorro!

Nas fotos, o incêndio e os brigadistas e voluntários que o combatem; o fogo já consumiu grande parte da área do Parque Nacional da Chapada Diamantina; na serra do Mandassaia, dias 15 e 16/11/2015

Como 350 anos de exploração econômica e social na Chapada Diamantina culminaram em uns dos maiores incêndios florestais da sua história

Por Rodrigo Santanna*, de Lençóis (BA), especial para os Jornalistas Livres; Com fotos de Açony Santos

“Fogo sempre pegou só que antes chovia, né?”

Foi justamente essa frase, dita por um ex garimpeiro da cidade de Lençóis, que deu início a esse documento. O hoje pedreiro Milton surpreendeu-me enquanto conversávamos pelo sentimento de cansaço estampado em seu rosto, quando me contava dos idos tempos, quando tudo ali era água e as queimadas, quando ocorriam, eram sem demora controladas pelas certas chuvas de estação.

Entre outras barbaridades, confirmou-me também um fato já conhecido, que apenas algumas famílias eram e ainda continuam sendo donas de enormes porções de terras griladas na região. Terras essas que eram totalmente queimadas para a criação de gado e para permitir a expansão da agroindústria. O fogo é um problema antigo na Chapada Diamantina, seu uso como agente limpador dos terrenos é cultural e ainda hoje sua prática causa enormes danos a fauna e flora da região.

Um incêndio de enormes proporções já consumiu cerca de 15 mil hectares do parque nacional (o equivalente a 15 mil campos de futebol), é difícil apontar causas, mas é fácil achar falhas grotescas no que diz respeito à prevenção do fogo e manutenção de uma equipe coesa e preparada para os eventuais incêndios que irão certamente ocorrer.

O poder público, como veremos adiante, não está nem nunca esteve ao lado da população. Desde a chegada do branco português à região, a exploração social e a total falta de respeito para com a natureza vem sendo a constante em uma equação que poderá ter como resultado o desaparecimento de alguns dos biomas mais ricos do país.

A região da Chapada Diamantina nem sempre foi uma imponente cadeia de serras. Há cerca de um bilhão e setecentos milhões de anos iniciou-se a formação da bacia sedimentar do Espinhaço, a partir de uma série de extensas depressões que foram preenchidas com materiais expelidos de vulcões, areias sopradas pelo vento e cascalhos caídos de suas bordas. Ocorreu depois um fenômeno chamado “soerguimento”, que tornaria visíveis os diversos minerais que posteriormente seriam encontrados nessas terras.

Os primeiros moradores da região de que se tem notícia foram os índios Maracás. Seus domínios estendiam-se desde o rio Paraguassu até as margens do rio de Contas. Por volta do ano de 1659, bandeirantes portugueses, organizados pela família Garcia de Ávilla, chegaram à região e em menos de 15 anos haviam praticamente acabado com todo o povo Maracá.

A exploração da área pela família durou quase dois séculos, tendo sempre como principal objetivo a busca por pedras preciosas, principalmente ouro e prata. A propriedade era tão grande que cortava a Bahia ao meio numa parábola que se iniciava em Salvador e finalizava no Maranhão.

A região fértil foi o berço para o desenvolvimento do que hoje chamamos de Chapada Diamantina. A agricultura e a pecuária eram então as principais atividades de exploração na colônia, até que em 1710, pela primeira vez, encontrou-se ouro próximo ao rio de Contas. Durante esse mesmo ano, a chegada de bandeirantes e exploradores marcou o início da era do garimpo na região.

Chegam também para trabalhar nas jazidas recém-descobertas os escravos negros. Estima-se que durante toda a escravidão no Brasil mais de 3 milhões de negros africanos foram trazidos à força para trabalhar nas lavouras e garimpos da então colônia. Um dos principais destinos do contingente era a Chapada Diamantina.

Num Brasil já acostumado ao uso do trabalho escravo, teve início a exploração do ouro de aluvião e, mais tarde, do diamante. Descoberto no início do século 19, a gema em breve tornaria a região a maior produtora de diamantes do mundo por quase 30 anos.

“Oficialmente o garimpo começou em 1844, no lugar conhecido hoje como cidade de Mucugê, onde aconteceu o verdadeiro rush do diamante na Chapada. A partir de lá a região da Chapada Diamantina começou a ser delimitada, de acordo com as migrações dos garimpeiros em busca da gema cobiçada. Até meados dos anos 70, após diversos momentos de crises e apogeus, imperou somente o garimpo rudimentar, conhecido como garimpo de serra ou artesanal, em que o cascalho diamantífero, derivado da erosão dos conglomerados da formação Tombador, era procurado entre sedimentos eluvionares e coluvionares existentes nos flancos dos relevos. Com a exaustão das jazidas das serras, o minerador lançou mão de equipamentos pesados para explotar os sedimentos aluvionares das bacias hidrográficas. Foram as chegadas das dragas que caracterizaram um maior volume de produção e, conseqüentemente, maior intensidade nos impactos sobre o meio natural.” (por Paulo Magno da Matta- “O garimpo na Chapada Diamantina e seus impactos ambientais: Uma visão histórica e suas perspectivas futuras”)

O ciclo do diamante, em seu auge, foi farto e rico, mas rápido. Durou apenas um quarto de século, o suficiente para redefinir a organização do espaço na Chapada Diamantina, forjar fortunas e poder, criando uma “aristocracia dos coronéis”.

O impacto do garimpo foi tão grande e de uma extensão tão abrangente que ainda hoje é possível, ao caminhar pelo parque, encontrar ruínas de antigas casas, canais, máquinas, esteiras, ferramentas e até mesmo verdadeiras cidades de pedra. Estima-se que a população da cidade de Lençóis, no apogeu da mineração, tenha sido de mais de 30 mil pessoas. Para se ter uma ideia, hoje essa mesma cidade é a que mais recebe turistas e mesmo assim possui de acordo com o IBGE cerca de 12 mil habitantes, apenas.

Como vimos até aqui, a história da Chapada é marcada pela exploração, violência e total desrespeito ao meio ambiente. O vale do Pati, hoje um dos lugares mais visitados do parque, já foi um dos maiores produtores de café do estado e, a exemplo de tantos outros lugares, teve sua mata nativa quase que totalmente derrubada ou queimada para o plantio e a pecuária.

Encontramos nesse breve levantamento histórico os alicerces sobre os quais o comportamento sócio-cultural da região foi edificado. Sobre esses mesmos alicerces, após o declínio do garimpo, tem início a era do turismo.

Após um começo tímido e desorganizado, foi com a criação do parque nacional, em 1985, que o fluxo de turistas começou a aumentar e claro, o dinheiro começou a voltar a região então assolada pelo total abandono, devido ao término da era do diamante. O turismo é hoje a principal fonte de divisas para a região — sua população está quase que totalmente ligada à atividade. Centenas de pousadas e campings recebem os turistas diariamente, o fluxo de brasileiros e estrangeiros é enorme, as agências ligadas ao turismo de aventura levam a cada dia um incontável número de pessoas aos mais diversos pontos turísticos da Chapada.

Nenhuma das atividades acima citadas é regulamentada.

Nenhuma delas conta com apoio governamental no que diz respeito à preservação do meio ambiente ou ao acesso a programas de aprendizagem e reciclagem de seus funcionários sobre as necessidades, deveres e consequências das ações tomadas numa área de preservação ambiental tão vasta e importante como essa.

Outro ponto importante: O turismo é a única opção de trabalho para a população local. O investimento em outras áreas de atuação não existe. Os cursos ministrados no Senac da cidade de Lençóis, por exemplo, destinam-se a fornecer a mão-de-obra para a rede turística. A escravidão pode ser apenas um ponto de vista, nesse ainda inaceitável Brasil-colônia.

 Os investimentos em prevenção e cuidados com o meio ambiente também são escassos. A cidade que recebe o maior fluxo de turistas, Lençóis, nem sequer tem um aterro sanitário estruturado. A cerca de 5 km da entrada da cidade, existe um espaço onde o lixo é jogado e rotineiramente incinerado. O lixo carregado pelo vento fica espalhado pela estrada e o mesmo pode acontecer com as fagulhas que, em tempos de estiagem como agora, podem gerar incêndios. Nem mesmo durante o atual incêndio, as queimadas foram paralisadas, ainda há fogo e fumaça saindo do lixão.

Tão grave quanto o descaso acima descrito é o total abandono pelas prefeituras das brigadas de incêndio que atuam nas cidades da região. A seguir o trecho de uma carta enviada pela população à prefeita da cidade de Lençóis, Moema Rebouças (PSD-BA), e ao secretário do meio ambiente da Bahia, Eugênio Spengler, no dia 18/11:

“A população de Lençóis, moradores(a) e visitantes, vêm por meio desta, manifestar seu repúdio e indignação com o descaso com que as autoridades locais e regionais lidam com os incêndios florestais que anualmente atingem a região, ignorando a tomada de medidas preventivas e omitindo apoio e incentivo ao trabalho da BRAL .

É inaceitável que em uma área de preservação ambiental e de altíssimo fluxo turístico como o Parque Nacional da Chapada Diamantina, não seja dotada de políticas de prevenção de incêndios florestais e que tampouco seja realizado, junto à comunidade local e turistas, campanhas de educação ambiental e conscientização.É inaceitável também que a brigada de incêndios local funcione exclusivamente de doações e mobilizações voluntárias e populares, sem nenhum investimento público no que diz respeito a manutenções, equipamentos ou treinamentos adequados para os brigadistas e voluntários. São os cidadãos e cidadãs de Lençóis, muitos pais e mães de família, quem arriscam suas vidas no combate a chamas de vários metros de altura, sem equipamentos de proteção adequados e sem nenhum treinamento específico para essa, no mínimo, insalubre função.Além disso, a população reclama a solução do problema com o manejo e descarte dos resíduos produzidos na cidade, manejo este que atualmente ignora completamente a Lei Federal 12.305/10 da Política Nacional de Resíduos Sólidos, além de oferecer um altíssimo risco de incêndio.”

O incêndio que atinge atualmente a Chapada Diamantina é o reflexo da exploração humana e ambiental da região. Infelizmente, a verdade não é que a ajuda não veio DESTA vez; é que ela NUNCA existiu. As autoridades locais, regionais e federais jamais estiveram interessadas no bem-estar da população ou na preservação do parque nacional.

Índios, escravos, trabalhadores ou voluntários são apenas diferentes denominações para aquelas pessoas que ainda fazem parte da mesma camada explorada dos tempos do Brasil colônia, aquela parte da população que não tem dinheiro, que não existe.

A comoção popular mostrou-se muito forte durante os últimos dias. As associações locais e a comunidade trabalham há dias em uma comovente união que nos faz acreditar que a solução está em cada um de nós, naquilo que todos nós podemos juntos reivindicar e mudar.

Governo é coisa do passado. É resquício que tem que queimar.


*Rodrigo Santanna é morador de Lençóis, na Chapada Diamantina, e faz parte da equipe de voluntários que está combatendo os focos de incêndio. É também publicitário. Escreveu o texto acima motivado pela indignação face ao cenário caótico e de total irresponsabilidade do poder público frente à tragédia.

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