O SUS e a População Negra

Ações e reações na Política de Saúde. Entrevista com Paula Vieira, membra da Aliança Pró Saúde da População Negra.

Estado de ignorância sistêmica

Estamos sob o signo da disputa ideológica no Brasil.
Há tempos está deflagrada a guerra de narrativas que assola ambientes populares, acadêmicos, políticos e socioeconômicos, dividindo posições e oposições nos mais diversos assuntos de interesse da sociedade.
Alguns irrelevantes, mas que tomam conta das rodas de discussão como interesses instantâneos, que somem ou se modificam com o passar das horas, dos dias.
A política eficiente e eficaz tende a diminuir traumas, aumentar as chances de cura e proporcionar mais qualidade de vida, e oferece informações qualificadas.

A esperança nascida do Movimento Negro

Casos de sucessos na salvaguarda de práticas ancestrais, realizações de ações afirmativas, de promoção e desenvolvimento de políticas públicas da saúde integral da população Negra é são apresentados pela Aliança Pró Saúde da População Negra.
Formada no território da capital de São Paulo e fruto de mais de quinze anos de atuação dos seus Griots e Iabás por todo o país, a Aliança é composta por iniciativas, grupos, coletivos, organizações não governamentais e membros negros da sociedade brasileira, que estudam e enfrentam os seguintes desafios de interesse público na área da Política de Saúde:

• Efetivar a implementação da Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) em todo o território nacional;
• Combater desigualdades raciais no ambiente da saúde;
• Propor sugestões e soluções para o atendimento digno à saúde da população Negra no SUS, maioria da população brasileira;
• Criar pontes entre os operadores, gestores e usuários para combater o racismo e a Intolerância, bem como todas as discriminações pejorativas, nos espaços de saúde públicos e privados;
• Contribuir com a melhoria dos indicadores de saúde e doença apresentados pela população negra
.

A política de saúde é a mais custeada por recursos públicos, em tese, mas a disputa ideológica que favorece a ideia de “que todos somos iguais e devem ser tratados iguais” ignora a razão do atendimento ser individual, e este serviço deve realizado de modo a proporcionar equidade aos corpos, nos territórios, respeitando as culturas, para que as condições estruturais e institucionais dos serviços sejam compatíveis e adequadas às necessidade do atendimento.
A rede SUS ainda não conhece e, portanto, não implementou a Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN), havendo inúmeros informes de preconceito conceitual e um estranhamento discriminatório por parte de gestores, operadores e até usuários, impedindo a consecução dessa política.
Nossa ação afirmativa é baseada em chamar a atenção da sociedade sobre meios e métodos que podem garantir o acesso e, também, promover a formação, a implementação e o financiamento da Política Nacional Integral de Saúde da População Negra (Portaria GM/MS, n.⁰ 992 de 13 de maio de 2009), conjugado ao acesso à participação social livre e democrática.

A voz da especialista

Paula Vieira. Foto: Divulgação

Para aprofundar o debate, convidamos a enfermeira especialista em Obstetrícia e Saúde da Mulher, Paula Vieira, que é integrante da Aliança Pró Saúde da População Negra, da Articulação Nacional da Enfermagem Negra (ANEN), Rede de Ativistas Antirracista Quilombação e Marcha das Mulheres Negras de São Paulo, para informar sobre esses modelos de gestão e programa de valorização da ancestralidade, mas que carecem de implementação diante da barreira estrutural provocada pelo racismo. A seguir, ela nos explica o que são, quais os principais objetivos e os princípios e como, na prática e com participação social democrática, podem ser vencidas essas barreiras do desconhecimento e da ignorância.

Quem é você e qual a sua ocupação no SUS?

“Eu sou uma mulher negra, nascida e criada em Itaquera, um bairro periférico localizado na região leste de São Paulo. Sou uma das três filhas da Dona Neide e Sr. Murilo, mãe e pai incríveis que não pouparam esforços para garantir o melhor possível para mim e minhas irmãs, e nos ensinaram o valor da Educação como ferramenta de emancipação e mobilidade social.
Sou enfermeira graduada pela USP há 15 anos e especialista em Enfermagem Obstétrica há 05 anos.”

Como se constitui a Política Nacional de Saúde da População Negra e qual sua finalidade?

“A Política Nacional de Saúde Integral da População Negra (PNSIPN) é a mais avançada política pública para o combate ao racismo estrutural dentro da área da saúde, com intuito de combater o Racismo e seu impacto sobre a saúde da população negra.
Como premissa ela reconhece o Racismo estrutural e institucional e as desigualdades raciais como determinantes sociais de saúde da população negra e, ao realizar esse reconhecimento, propõe caminhos para o seu efetivo combate, e consequentemente, espera-se a melhoria nos indicadores de saúde dessa população.

É uma política pública social, fruto da intensa luta de muitas pessoas, de trabalhadores da saúde, usuários e do movimento social negro organizado que, ainda hoje, decorridos quase 14 anos de sua publicação, ainda encontra dificuldades para sua real implementação na prática.

Por ser voltada à População Negra fere algum dos princípios do SUS? Especialmente da igualdade de tratamento?

É exatamente o contrário, a PNSIPN é uma política pública social de reparação histórica, justiça e equidade, que é um dos princípios doutrinários do SUS.
O princípio da equidade no SUS dá condições para reconhecer que a população brasileira é plural e diversa em vários aspectos e, desta forma, reconhece que é necessário oferecer ações e intervenções de saúde diferenciadas aos diversos grupos sociais e populacionais, de acordo com suas necessidades e particularidades.
Os grupos populacionais apresentam diferentes realidades, condições de vida, de trabalho, de renda, de moradia, entre outros, que impactam diretamente sobre suas condições de saúde, adoecimentos e mortes. Justamente por isso, as ações e recursos de saúde devem ser ofertados considerando essas realidades, para o atendimento real e efetivo de suas necessidades.
Prover o direito à saúde de modo equânime otimiza o uso de recursos públicos, reduz desigualdades em saúde e melhora os indicadores de saúde de toda a população, principalmente da população negra e indígena, pois oferece mais cuidados a quem mais precisa de atenção e menos a quem precisa de menos intervenções.
Portanto, se a população negra e indígena, apresentam os piores indicadores de saúde, a PNSIPN é uma política extremamente relevante para promover as mudanças dessa realidade.”


Como podemos nos envolver e fiscalizar para implementar e evoluir com essas demandas SUS?

“A participação da população negra e indígena em instâncias de controle social do SUS, é um dos instrumentos de poder que devemos nos apropriar. E isso é de extrema urgência e importância para exigir a real implementação da PNSIPN, promover a mudança de realidade dos processos de saúde e doença e pela própria garantia do direito à saúde, de modo equânime.
Outra questão não menos importante, é que saibamos eleger representantes alinhados às nossas pautas em instâncias políticas, além de dar condições para que tenhamos representantes no setor judiciário e econômico, pois pelo racismo se tratar de problema que estruturou a formação da sociedade brasileira, e ainda sustenta as relações sociais, ele também precisa ser combatido em todas as grandes instâncias de poder.
Todos os direitos sociais desse país, hoje garantidos pela constituição brasileira, foram frutos de árduas lutas coletivas, que deram sustentação para a consolidação dos nossos direitos sociais fundamentais. Portanto, nossa atuação deve ser resistente, incisiva, conjunta, coletiva, em movimentos sociais organizados pautados pela democracia e bem viver. E, assim, escolho me colocar nessa luta.”

A promoção da PNSIPN

A entrevista reflete sobre o desconhecimento de um sistema que já está legislado e regulado desde 2009, ou seja, há 12 anos.
Pedimos reflexão sobre esta ação afirmativa proposta para informa a existência e o alcance da Política de Saúde Integral da População Negra. E para quem quiser participar das Conferências de Saúde, que são de responsabilidade das Secretarias Municipais de Saúde, advoga-se que a participação popular, apoiada em Normas Antidiscriminatória (Lei 12288/10 – EIR, e Decretos 6040/07 e 8750/16 PCTs) e orientada pelo artigo 7º do Decreto 10932/2022 – Convenção Interamericana de combate a Discriminação, Racismo e Intolerâncias, é essencial para aprimorar Sistema Único de Saúde.

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