Dívida histórica, reparação e retomada, justiça: todos esses termos podem ser aplicados a uma reflexão sobre a Lei de Cotas, que completa dez anos de sua oficialização em nosso país. Para além das palavras, é necessário celebrar avanços e, na mesma medida, cobrar melhorias nos sistemas de paridade social, sendo esta última uma utopia ainda distante.
Um dos sinais que nos leva a crer que a justiça tardará a chegar está no discurso dos presidenciáveis em pleno 2022: das sabatinas, debates e propagandas políticas, nem 1 segundo foi destinado ao tema até o momento, com o aditivo de estarmos, neste ano, na iminência da revisão da lei que ampara, mesmo que parcialmente, grande parte da população brasileira que, até então, esteve totalmente às margens das oportunidades de desenvolvimento acadêmico em nível superior.
Como costumo dizer, raça e gênero são fundamentos. Não é uma ‘questão’, não é um ‘engajamento’. Trata-se de leitura histórica, sociológica, ou seja, de um dado de realidade. Entretanto, apesar de tanta ‘concretude’, muita luta foi necessária, por parte dos movimentos negros, para que alguns dispositivos em prol de seu povo fossem criados. Uma linha do tempo simples é capaz de iluminar o tamanho da batalha: de 1888, à promulgação da Lei Áurea, até que houvesse o surgimento de uma pequena reparação oficial quanto ao mais bárbaro crime de nossa civilização, se foram 124 anos de ‘negociação’.
Trazendo mais dados relativos à contemporaneidade, voltemos a 2006, quando mídia, artistas e celebridades – brancos em sua maioria – insurgiram contra a lei de cotas. Citaria nomes, em tempos menos difíceis, mas avalio a necessidade da validação dos apoios a Lula no próximo pleito (entendedores entenderão).
De toda forma, não nos desprendamos aos números trazidos pela Lei de Cotas. Nestes dez anos, a despeita de quem argumente pela ‘meritocracia’ – e pela ignorância quanto aos processos históricos – a presença de negros cresceu em torno de 400% nas universidades, elevando sua representação a um total de 38% dos estudantes, embora sejamos 56% da população nacional. Faça uma conta rápida e descubra de qual era a porcentagens de pessoas negras na universidade antes dos anos 2000!
Sobre todos esses dados positivos, entretanto, a soberania e manutenção da lei nunca esteve num patamar aceitável de segurança. Isso aumenta na medida em que congressos e assembleias legislativas caminham em favor de discursos racistas, por meio de deputados eleitos com base em discursos encharcados de preconceitos, mas enfeitados sob premissas da retórica corporativa/contemporânea.
A verdadeira democracia é, necessariamente, uma inversão da política tradicional. Para que surta efeito, ela deve se posicionar em sinergia com um discurso radical pelo fim dos privilégios da branquitude, oferendo as condições de fortalecimento das populações empobrecidas pelo status quo. Lembre-se, vivemos séculos em que prevaleceu um sistema de cotas de 100% para os ricos.
Não calemos perante a ausência do fundamento de raça das campanhas políticas, por mais que a prioridade seja, neste momento, a aniquilação do bolsonarismo. A luta do povo preto ultrapassa em muito os anos de retrocesso instaurados pelo pseudo-presidente da república.