Ao contrário do que se pensa, a prática do lawfare não acabou no Brasil. Você sabe o que é lawfare? Direto do Forum Social Mundial, em Porto Alegre, acontece na noite desta quinta (28), o lançamento do projeto “Lawfare Nunca Mais” que tem como ponto de partida, a denúncia de quatro casos emblemáticos dessa prática absurda no país. Trazemos nessa matéria, um resumo sobre essas histórias e o link para a transmissão ao vivo do debate. Leia e acompanhe conosco.
A educadora Márcia Lucena passou mais de uma década a construir política pública educacional até ser eleita prefeita de Conde-PB, cargo que exerceu entre 2017 e 2020, com forte participação social.
O preço por incomodar os que sempre foram privilegiados foi cobrado nas primeiras horas do dia 17 de dezembro de 2019, quando policiais federais adentraram em sua casa, revirando-a sem nenhuma explicação e, no ápice do abuso de autoridade, a levando presa.
No final desse dia, Márcia soube que o MP-PB a acusou de participação em uma organização criminosa chefiada pelo governador Ricardo Coutinho. Ficou presa por cinco dias até que o STJ a soltasse, mediante uso de tornozeleira eletrônica que a proibiu de visitar o pai doente na casa vizinha. Passaram mais de dois anos e nunca foi ouvida por um juiz. A sua defesa ainda não foi lida por um juiz.
Acusar pessoas por crime impossível para interromper políticas públicas de inclusão social é característica de lawfare. Márcia foi acusada de assinar contratos com Organizações Sociais para desviar recursos públicos. O MP alegou que os contratos teriam sido assinados no ano de 2017, quando a educadora ocupava o cargo de Secretária de Educação no governo estadual. Mas isso era impossível, pois Márcia não estava mais no governo estadual. Havia saído em 2014. No ano de 2017, era prefeita de Conde e nunca assinou qualquer contrato com Organizações Sociais.
Com quase 50 anos de exercício da medicina, Elias Rassi Neto apostou na saúde coletiva e na participação social na construção da Saúde Pública goiana. Da vereança à Secretaria Municipal de Saúde de Goiânia, o médico defendeu a bandeira do Sistema Único de Saúde: universalidade, integralidade e equidade.
Municipalizou a saúde de Goiânia, implantando quase 80 equipes de saúde de família. Construiu a maternidade “Nascer Cidadão”, referência estadual e nacional de atenção à mulher e à criança. Providenciou a manutenção de ambulâncias e reformou a maternidade “Dona Íris”. Tudo no período de janeiro de 2011 a dezembro de 2012, quando estava secretário municipal de Saúde.
Todavia, nesse tempo, foi duramente admoestado pelo CRM, que o fez responder 25 sindicâncias, e pelo MP de Goiás. O que Elias enfrentava era a saúde empresarial. Ao ponto do Tribunal de Contas estadual abrir 1.200 processos, que geraram 80 multas. O MP/GO instaurou 70 inquéritos civis públicos e mais 10 processos judiciais no TJGO. Somando todos os processos, os valores cobrados e corrigidos ultrapassam 200 milhões de reais, enquanto o médico professor universitário recebe um salário mensal líquido de 5 mil reais.
A chuva de processos que encharcou o médico da saúde coletiva e pública tinha forte cheiro de injustiça. Os ventos tenebrosos responsáveis por disseminar a tempestade vinham dos órgãos de controle, passavam pelo MP e chegavam às redações dos jornais. O clima detectado é de lawfare.
Teólogo e pastor presbiteriano há mais de 30 anos, o paulista Luis Alberto de Mendonça Sabanay se dedicou desde muito jovem a uma das principais questões da nossa nação: a luta por moradia digna.
Foram 12 anos de atuação no Ministério da Pesca e Aquicultura, à frente de um programa de resgate e valorização da pesca artesanal e de subsistência, com benefício para mais de um milhão de famílias. A política pública desenvolvida tratava da segurança alimentar, da permanência da população nativa ribeirinha no seu local originário e também do tema de extrema importância mundial: a água, o bem mais precioso do planeta e razão suficiente para gerar guerras.
E por empunhar essas bandeiras afetas a diversos setores e que envolviam interesses internacionais, enfrentou a sanha dos poderosos. Em outubro de 2015, uma operação policial deflagrada pela PF e Ibama, em diferentes cidades brasileiras. Foram 400 policiais federais para conduzir coercitivamente 26 pessoas e prender 19 que foram levadas para um dos piores presídios do país.
A denúncia, apresentada no Rio Grande do Sul, pelo MPF, tinha como pano de fundo a legislação para licença de pesca. Legislação que, no estado gaúcho, era única e diferente da legislação nacional, no que tange a pesca acidental de determinadas espécies. As consequências para o pescador nos mares do extremo sul do Brasil, cuja rede, acidentalmente, capturasse espécie protegida, eram mais graves e foi contra isso que Sabanay se interpôs. Foi acusado por crime ambiental e complexo.
Foram 43 dias de cárcere no Presídio Central de Porto Alegre, e mais de cinco anos até que Sabanay fosse absolvido nas esferas cível, criminal e administrativa. O conluio entre Justiça e mídia, para destruir sua reputação e paralisar uma política pública e estratégica para a soberania do país, constituiu a prática de lawfare.
Arquiteto de formação e bancário, concursado do BB, o catarinense Henrique Pizzolato presidiu a CUT-PR, ajudou na construção do PT. No Banco do Brasil foi eleito, por voto direto de seus colegas para a cúpula do banco. Da mesma forma foi eleito diretor do maior fundo de pensão da América Latina, a Previ, dos funcionários do BB. Depois, foi indicado pelo presidente do banco para ser diretor de marketing, isso no primeiro governo Lula.
Por ser sindicalista e detentor de informações estratégicas pelos cargos que ocupou, foram motivos determinantes para que fosse declarado inimigo político e incluído numa trama que já tinha final decidido. O PGR o envolveu no chamado Mensalão, pois precisava puxar o fio da meada pelo dinheiro e nada mais crível do que envolver um banco, um bancário com cargo importante no BB e, principalmente um petista, para fechar a estorinha, com desvio de dinheiro público, do BB.
O personagem e alvo principal era Lula, o governo que chamou o povo para participar do orçamento que até então era destinado só para os ricos. O lawfare foi a arma utilizada para interromper o bem-sucedido governo popular e para eliminar suas principais lideranças.
Naquele julgamento espetáculo, o STF e o PGR/MPF jogaram às favas as garantias individuais, os direitos de defesa e as provas de que o dinheiro não era público, não era do BB e não foi desviado. O próprio BB afirmou que o dinheiro não lhe pertencia, pois pertencia à empresa privada Visanet, “filha” da empresa americana, Visa Internacional. A empresa privada comprovou que o dinheiro foi usado em propagandas dos cartões de crédito da sua marca Visa.
O STF ignorou as provas de inocência e condenou Pizzolato a mais de 12 anos de prisão, além do pagamento de multa milionária.
Sem ter direito a recorrer da decisão, pois foi julgado diretamente na última instância, buscou a Itália como refúgio e lugar para brigar por sua inocência. O Brasil contratou advogado na Itália, a peso de ouro, para conseguir a extradição de Pizzolato e conseguiu.
Preso no Brasil, foi alvo de uma avalanche de outros processos nas esferas criminal, cível e administrativa, no TCU e na CVM – todos com fundamento no erro do STF que transformou dinheiro privado, da Visanet, em dinheiro público do BB.
Um caso típico de lawfare que se vale de julgamentos de exceção, da distorção das leis, de denúncias com mesmo objeto em processos distintos, da cobertura midiática e da perseguição judicial inclusive contra familiares.
O modus operandi da (in)justiça
Os quatro casos aqui relatados expressam a tortura jurídica travestida de combate à corrupção. Os acusados foram sumariamente julgados como culpados pela opinião pública à medida que os fatos eram vazados calculadamente, dia após dia, aos principais veículos de comunicação de massa, desse modo só coube à Justiça confirmar o veredito final.
O método de produção da denúncia contou com órgãos de controle aliados à Justiça, que desprezou a jurisdição dos fatos, em alguns casos. Em outros, construiu artifícios para que magistrados e promotores “amigos” fossem usados como instrumentadores na construção de uma linha de montagem de processos viciados, travestidos de materialidades. Por fim, os acusados tiveram suas vidas destruídas para sempre, pois a imagem de culpado ficou no imaginário do senso comum, ávido por novos casos.