Discurso único da mídia na crise ucraniana é sintoma de um problema muito maior

Em nome da democracia, da liberdade, da civilização cristã, caminha-se celeremente para o abismo e não há quase ninguém para gritar que o rei está nu e doente

Por Márcio Sampaio de Castro*

Em 2010, o jornalista e produtor australiano John Pilger lançou o documentário The War You Don’t See. Em uma série de entrevistas com repórteres e editores das principais publicações norte-americanas e britânicas, Pilger gentilmente vai conduzindo seus entrevistados ao constrangimento ao perguntar-lhes por que não foram capazes de perceber que o governo dos EUA fabricara as evidências de armas de destruição em massa alegadamente produzidas pelo Iraque. Mais do que isso, por que haviam apoiado a invasão do país asiático sete anos antes, o que custaria, em estimativas conservadoras, a vida de meio milhão de pessoas. O grande porta-voz do pensamento liberal e cosmopolita da costa leste estadunidense, o jornal The New York Times, chegaria a publicar em editorial um pedido de desculpas pelo apoio à invasão.

Em 2011, o cenário se repetiria com os incessantes pedidos pela criação de uma zona de exclusão aérea sobre a Líbia de Muamar Kadafi. Reportagens com denúncias sobre massacres de civis indefesos e até sobre a distribuição de Viagra para os soldados do autocrata, para que pudessem violentar mulheres com mais facilidade, foram largamente publicadas até que o Conselho de Segurança da ONU votasse e aprovasse a Resolução 1973/2011. O resultado foi a morte de milhares de líbios sob as bombas da OTAN (Organização do Tratado do Atlântico Norte), o fuzilamento do ditador após seu empalamento no meio da rua e a destruição do Estado nacional líbio, reduzido a uma condição medieval, onde tribos lutam até hoje entre si pela supremacia territorial e por zonas de influência sobre os escombros de um país que já ostentou o maior IDH (Índice de Desenvolvimento Humano) do continente africano.

Chegamos a 2022 e o quadro se torna ainda mais desesperador. A invasão da Ucrânia pelas forças armadas da Federação Russa no último dia 24 de fevereiro promove um comportamento orwelliano sem precedentes na história da imprensa ocidental, pelo menos, desde o final da Segunda Grande Guerra. Discursos de ódio, fake news, cultura do cancelamento, manipulações, ausência do contraditório, fabricação de consensos, abafamento de pontos de vista indesejáveis, falta de abertura mínima para o contraditório, conluio entre grandes conglomerados de mídia e big techs, enfim, todos os males que vêm nos afligindo de maneira crescente na última década explodiram de maneira avassaladora a partir dos eventos na Europa Oriental.

Vamos tratar a partir de agora de alguns exemplos para que o argumento mais importante possa ser apresentado ao final deste texto.
A jornalista e documentarista francesa Anne-Laure Bonnel foi explicitamente censurada nos primeiros dias de março por duas importantes publicações francesas. Registrando o conflito a partir da autoproclamada República de Donbass no leste ucraniano, Bonnel teve um texto apagado pelo jornal Le Figaro. Na matéria, a jornalista registrava o sofrimento da população local em meio às agruras da guerra e denunciava a presença ostensiva de células neonazistas atuando abertamente junto ao exército ucraniano. Já o jornal Libération acusou a profissional de “aderir aos argumentos das autoridades russas”.

Ainda que isso seja verdade, cabem algumas perguntas: Acusações não devem ser formuladas a partir de delitos? Como cidadã francesa, a jornalista cometeu algum crime de traição contra os interesses e a segurança nacional de seu país? Não seria o papel de uma publicação que atua no interior de uma democracia liberal permitir o contraditório nas narrativas para que seu público possa decidir por conta própria o que mais se aproximaria da verdade dos fatos?


No Reino Unido, a vetusta organização de mídia BBC produziu a partir de 2014, quando do golpe de Estado que levou à queda do então presidente Viktor Yanukovych, uma série de reportagens nas quais denunciava claramente a presença de elementos da extrema-direita e grupos declaradamente nazistas na política e nas forças armadas ucranianas. Dez dias antes da invasão russa, porém, publicou um extenso artigo assinado por Kayleen Devlin e Olga Check classificando as alegações de massacres de civis no Donbass e a presença de neonazistas na Ucrânia de superestimadas ou não comprovadas. Seriam fruto de uma campanha de desinformação promovida pela Rússia.

Do outro lado do Atlântico, a situação não se mostrou muito melhor. Em entrevista ao jornalista brasileiro Luis Nassif, o também jornalista estadunidense Glenn Greenwald produziu um diagnóstico preciso do quadro: A russofobia construída pelos democratas a partir da vitória de Donald Trump nas eleições de 2016 ganhou dimensões tão robustas que até o relatório do FBI, indicando que jamais existiu o Russiagate – o suposto conluio entre o Partido Republicano e o Kremlin para viabilizar a vitória trumpista -, foi solenemente ignorado pela mídia democrata. O resultado? Construiu-se um sentimento antirrusso tão intenso em amplos setores da sociedade daquele país, que o discurso de ódio foi naturalizado, a ponto de um senador propor tranquilamente o assassinato do autocrata russo Vladimir Putin.

Ainda na linha do discurso de ódio, a empresa Metaverso removeu as travas que inibiam apologias desse tipo quando o assunto são os russos. A barbárie foi sancionada dentro dos parâmetros estabelecidos pela empresa.

Laboratórios

O silêncio também chama a atenção. Mais de 20 laboratórios de pesquisas biológicas financiados pelos EUA foram recentemente descobertos na Ucrânia. Sob a pesada suspeita de produzirem patógenos para utilização como armas de destruição em massa. A existência desses locais foi reconhecida pela subsecretária de Estado, Victoria Nulland, em depoimento juramentado diante de uma comissão do Senado estadunidense. A cobertura da mídia ocidental foi mínima e, ainda que a Organização Mundial de Saúde e o governo da China tenham cobrado explicações em reiteradas oportunidades, o grande público ignora completamente este assunto.

Por fim, ainda que os exemplos sejam muitos e com recortes variados, fiquemos com somente mais um caso.

Os escritórios e estúdios das empresas de mídia Russia Today e Sputnik News foram fechados ou proibidos de transmitir seus sinais nos EUA, na Grã-Bretanha e na Alemanha sob a alegação de disseminarem mentiras. Diversos profissionais perderam seus empregos nesses países. A plataforma de vídeos na internet YouTube, pertencente ao grupo Google, bloqueou e apagou os conteúdos dos dois canais russos, num gesto de censura também difícil de explicar. Acessar uma versão alternativa para os fatos tornou-se uma tarefa ainda mais complicada para aqueles que buscam furar a bolha informativa dos conglomerados ocidentais.

Para além dos desdobramentos diretos do conflito na Ucrânia, evidencia-se um estrangulamento vigoroso dos princípios da democracia liberal burguesa nos seus principais centros. Classes políticas esclerosadas, vinculadas aos interesses mais inconfessáveis do grande capital, são apoiadas por grandes grupos de mídia tradicionais, e suas versões nas plataformas das big techs, para promover a censura, a manipulação e a desinformação de forma cada vez mais escancarada. Os escrúpulos estão sendo devidamente enviados às favas e uma mão de ferro se impõe em nome de um pensamento único, uma agenda única. Esse estado de coisas denota claramente os indícios inequívocos de que a ordem liberal – e seus alegados princípios de autonomia do pensamento e de opinião – colapsa de dentro para fora.


Se após a invasão do Iraque houve um pedido constrangido de desculpas, o passo atual das coisas sugere não haver qualquer tipo de pudor ou de incômodo. As consequências na linha do tempo são imprevisíveis e o prognóstico é sombrio. Em nome da democracia, da liberdade, da civilização cristã e o que mais couber no discurso, caminha-se celeremente para o abismo e não há quase ninguém para gritar que o rei está nu e doente.

(*) Márcio Sampaio de Castro é mestre em Comunicação e Cultura pela Escola de Comunicações e Artes da Universidade de São Paulo. Pós-graduado em Teoria e Técnicas de Comunicação pela Faculdade de Comunicação Social Casper Líbero, onde também se graduou em Jornalismo. É professor assistente nos cursos de Relações Internacionais, Propaganda e Marketing, Economia e Administração das Faculdades de Campinas (FACAMP). É professor nos cursos de Jornalismo, Propaganda e Relações Internacionais da Escola de Administração e Marketing de Campinas (ESAMC). Foi coordenador do curso de Comunicação Social na Anhanguera Educacional, Faculdade Anhanguera de Campinas (unidade 3). Foi colaborador do jornal Valor Econômico, da revista Carta Capital e das publicações Aventuras na História e Grandes Guerras, da Editora Abril.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

COMENTÁRIOS

4 respostas

  1. Matéria muito esclarecedora. Sinto que ainda há muito mais a ser esclarecido nesse conflito…

  2. Estou começando a achar que a covid 19 foi arte da EUA para prejudicar os chineses… com governantes sem escrúpulos com este país vem fabricando, nada é impossivel…. estes laboratórios na Ucrânia da o que pensar e a Russia se prepare porque a Europa ainda continua a pensar que é o centro do mundo junto com EUA. Jamais aceitaram a Rússia como um país igual, sempre vão incluí-la… quando vamos ser apenas seres humanos além de cor, raça, religiao2 etc …apenas seres humanos

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