Rodrigo Perez Oliveira, professor de Teoria da História na Universidade Federal da Bahia
Por sua própria natureza, as doenças infecto-contagiosas transcendem a comunidade dos especialistas e se tornam parte do debate público, inspirando conflitos sociais.
Medo, crendices, mandingas, curandeirismos, violência contra os grupos sociais vistos como sujos, doentes, contaminantes. Controle de corpos e condutas considerados inadequados. Da hanseniáse à covid, passando pela tuberculose, pelo sarampo e pelo HIV, a história das pandemias e epidemias se confunde com a história social e política das comunidades humanas .
Para além do conhecimento científico e médico (jamais desprovido completamente de afetação ideológica e projetos de dominação), as doenças infecto-contagiosas são objeto de discursos, alvo de disputas político/semânticas.
Durante muito tempo, portadores de hanseniáse, chamados pejoratiamente de “leprosos”, foram encarcerados, tratados como criminosos. Nas décadas de 1980 e 1990, o HIV foi chamado de “câncer dos gays”, alimentando todo tipo de preconceito contra a comunidade LGBT.
Se hoje, a hanseníanse e o HIV não mais provocam preconceito social tão violento é porque as doencas foram controladas não apenas pela ciência, nas bancadas laboratoriais. Foram, também, disciplinadas no discurso público, incorporadas ao conjunto de doenças normalizadas pela cultura, deixando, assim, de despertar medo, violência e ódio.
Entre 2020 e 2021, as mentes mais brilhantes do mundo estiveram debruçadas sobre a Covid. Talvez nunca antes na história tenha acontecido empreendimento intelectual de tamanha proporção. Não é pouco o conhecimento acumulado sobre o tema, com destaque para as vacinas que já se provaram eficazes.
Segundo especialistas, a variante omicrôn coloca a cronologia da pandemia em outro momento, próximo ao fim. Como a variante é muito mais transmissível e menos letal, os estudiosos afirmam que pode estar acontecendo a “banalização” da doença, o que seria algo positivo.
Em entrevista ao Uol News, Pedro Hallal, epidemiologista e editor-chefe da revista Journal of Physical Activity and Health, afirma que a “omicrôn é boa notícia” na medida em que, ao transformar a covid numa doença endêmica, sugere que o fim da pandemia está próximo. Hallal crava: “2022 é o último ano da pandemia”.
Margareth Dalcomo, pesquisadora e pneumologista da Escola Nacional de Saúde Pública (Ensp/Fiocruz) e vencedora do prêmio “Personalidade do ano de 2021”, tem opinião semelhante à de Hallal. Com a absoluta maioria de casos leves e assintomáticos e a limitação de casos graves às pessoas não vacinadas e imunossuprimidas, a omicrôn seria estágio superior da evolução do vírus, que para sobreviver e se disseminar precisa manter o hospedeiro vivo. Essa seria a tal “banalização”, com a covid fazendo parte da vida social, sendo mais uma entre tantas doenças que desde o início dos tempos, eventualmente, ceifam vidas humanas, sem provocar grandes depressões demográficas.
Gonçalo Vecina, médico e primeiro diretor-presidente da Anvisa, em entrevista à Globo News, chega a questionar a necessidade da testagem em massa. Se a contaminação progride em escala geométrica, a contaminação atingirá algo próximo à totalidade da população. Nessa situação, a busca desenfreada por testes teria pouco impacto no controle da pandemia e ainda oneraria o sistema de saúde. Vecina acredita que, hoje, a sobrecarga nos hospitais se deve menos aos desdobramentos biológicos da doença e mais à busca de testes e atestados médicos. A solução seria, então, algo simples: quem estiver com sintoma leve fica em casa, com os RHs das empresas sendo menos rigorosos na cobrança de atestados médicos. E fora isso, vacinar, vacinar e vacinar, com o poder público exigindo passaporte de vacinação e fazendo busca ativa dos não vacinados.
À luz do que dizem os especialistas, penso que estamos nos aproximando do momento em que será necessário produzir um outro discurso público sobre a covid-19, menos atravessado pelo trauma e pelo medo. Capaz de normalizar a doença. Acho mesmo que esse deveria ser compromisso ético de todo formador de opinião, seja cientista, jornalista ou intelectual.
A explosão de casos com a manutenção de óbitos em níveis baixos e restritos a não vacinados e imunossuprimidos não deveria ser motivo de medo. É a prova de que a ciência está vencendo a doença. É necessário cuidado para que o medo não nos leve a negar a ciência e desconfiar das vacinas. O medo pode ser uma modalidade de negacionismo.
O medo provocado pelo discurso apocalíptico começa a causar mais danos do que a própria doença, como o fechamento de escolas e universidades, atos criminosos contra a formação de nossas crianças e jovens.
Na história humana, o medo coletivo nunca foi bom conselheiro, sempre foi a antessala da violência, contra o imigrante, contra as minorias, contra os “contaminados”. Como já disse Chico Buarque, “filha do medo, a raiva é mãe da covardia”.