No dia 17 de abril de 2017, no município de Araxá, a Polícia Civil do Estado de Minas Gerais lavrou o auto de prisão em flagrante por furto do cidadão desempregado Carlos René Francisco Hipólito.Em um supermercado da cidade, Hipólito tentou furtar dois pedaços de carne de frango processadas industrialmente e vendidas em forma de bife, sob o nome comercial de “steak” no valor de gôndola de R$ 2 cada.
Por Vinicius Segalla, do Brasil de Fato
Nada mais o desempregado – que havia sofrido ação de despejo de sua casa um ano antes e morava de favor com um amigo – tentou subtrair do estabelecimento. Só os dois bifes de frango.
Posteriormente, em depoimento na delegacia de polícia, ele confessou a motivação para o delito: fome.
O crime flagrado, no entanto, foi apenas tentado, não consumado: é que um segurança do mercado desconfiou do cidadão, e Hipólito acabou por confessar o ilícito e devolver a mercadoria, ficando apenas com a fome que já levava consigo quando adentrou o local.
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Tal desenrolar dos fatos não foi suficiente para livrar o desempregado das consquências jurídicas de seu ato. O dono do mercado chamou a polícia, Hipólito foi preso em flagrante, mas teve sua prisão relaxada no dia seguinte, passando, a partir daí, a responder ao inquérito e ao posterior processo penal em liberdade.
Rapidamente, a polícia concluiu as investigações – tratava-se de tentativa de furto com prisão em flagrante e confissão lavrada em depoimento. Convicta da culpa do então investigado, no dia 27 de abril de 2017, a autoridade policial providenciou a entrega dos autos conclusos em carga para o Ministério Público de Minas Gerais no dia 27 de abril.
A promotoria estadual, por sua vez, também foi célere para concluir que o então investigado era culpado e, no dia 11 de agosto de 2017, apresentou denúncia em desfavor de Carlos René Francisco Hipólito, por crime contra o patrimônio, na 2ª Vara Criminal de Araxá.
A Justiça de Minas Gerais, a seu turno, achou por bem receber a denúncia no dia 13 de setembro de 2017. A partir de então, o desempregado deixou de ser investigado para se tornar réu pelo crime de furto – que jamais chegou a ocorrer – no processo número 0026963-92.2017.8.13.0040, corrente no Tribunal de Justiça de Minas Gerais, como se vê abaixo.
Dados da ação criminal movida contra Francisco Hipólito desde abril de 2017; ele tentou furtar dois bifes de frango / Reprodução
Carlos René Francisco Hipólito, em 2017 como hoje, não tinha advogado, nem tinha dinheiro para pagar um. Na verdade, ele tinha muito pouca coisa, além de fome.
Assim, como a lei brasileira garante a todo e qualquer cidadão o direito a um representante legal, a Defensoria Pública de Minas Gerais passou a defender o réu, que encarava a possíbilidade de ser condenado por um crime (ART 155 do Código Penal) com pena prevista de um a quatro anos de prisão.
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O processo contra o desempregado passou três anos movimentando o sistema judicial, período de instrução processual, em que foram realizadas audiências, ouvidas testemunhas e apresentadas provas.
Nesse meio tempo, a Defensoria tentou extinguir a ação penal, por meio de recursos em que alegava tratar-se de evidente caso de “furto famélico e de valor insignificante”, condições em que a lei prevê o trancamento (extinção) do processo.
O juiz responsável pelo caso da 2ª Vara Criminal de Araxá, no entanto, não entendeu assim, mantendo aberto o processo, com data de julgamento a ser marcada. A Defensoria, então, impetrou um habeas corpus em segunda instância, na tentativa de reverter a decisão.
Assim, o caso foi remetido ao Tribunal de Justiça de Minas Gerais (TJ-MG), onde uma turma de três desembargadores passou a se debruçar sobre os autos. Na segunda instância, o processo ganhou novo número: 1.0000.20.027907-3/000.
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No dia 13 de abril de 2020, sob a relatoria do desembargador Cássio Salomé e com a participação dos magistrados de segunda instância Agostinho Gomes de Azevedo e Sálvio Chaves, o TJ-MG proferiu acórdão sobre a lide, negando, por dois votos a um, o pedido de habeas corpus e mantendo aberta a ação penal contra o desempregado que tentara furtar de um mercado – alegadamente por motivo de fome – dois bifes de frango de valor total de venda de R$ 4.
De nada adiantou o desembargador Sálvio Chaves alegar, em seu voto, que:
O valor da res subtraída (steak de frango marca Sadia) é insignificante, qual seja, R$2,00 (dois reais), importância esta equivalente à aproximadamente 0,5% ao salário mínimo vigente ao tempo do fato (R$ 937,00). Tem-se ainda, que na subtração do objeto não foi utilizada violência ou grave ameaça, além disso, a res furtiva [em português, a “coisa furtada”, ou seja, os dois steaks de frango] foi devolvida à vítima, segundo consta do termo de restituição de fl. 21-Ordem 02. Todas essas circunstâncias não justificam o ilícito, mas reduzem a gravidade de agir e a potencialidade da lesão ao bem jurídico. (…)
Desta feita, diante do valor irrisório da res furtiva, somado à primariedade do Paciente, a incidência do Princípio da Insignificância no presente caso é a medida mais acertada, notadamente porque, o mínimo valor do resultado obtido autoriza o juiz a rejeitar a denúncia ou a absolver o réu, quando a conduta do agente não gerou prejuízo considerável para o lesado, nem foi cometida com o emprego de violência ou grave ameaça à pessoa, o que ocorreu, in casu.
Assim não entenderam os desembargadores Agostinho Gomes de Azevedo e Cássio Salomé. Este último – o relator – explicou no acórdão por que o Estado de Minas Gerais não poderia encerrar ali mesmo a persecução por crime de (tentativa de) furto de Carlos René Francisco Hipólito:
Requer a impetração, em síntese, o trancamento da ação penal por ausência de justa causa, pugnando, in casu, pela aplicação do princípio da insignificância, vez que, em tese, furtado pelo paciente dois steaks de frango, cada um, avaliado em R$2,00 (dois reais), tratando-se de agente primário e de bons antecedentes.
A pretensão da impetração não pode ser acolhida porque a averiguação da atipicidade material da conduta, em decorrência da aplicação do princípio da insignificância, depende do exame aprofundado das provas e circunstâncias dos autos principais, o que não é dado realizar na via estreita do Habeas Corpus. (…)
Ressalte-se que, ainda que assim não fosse, quanto ao princípio da insignificância coaduno pela inviabilidade de ingerência do mesmo no ordenamento jurídico brasileiro, vislumbrando, ademais de outras consequências jurídicas e práticas, a condescendência delitiva, que não pode ser tida como invisível pelo Estado, pois se trata, a princípio, de fato típico, ilícito e culpável. A meu ver, a aplicação do referido princípio importaria no desprestígio da função preventiva da norma, estimulando a reiteração de delitos.
Ou seja, por maioria, a turma de desembargadores entendeu que, no caso em tela, não era possível determinar com certeza que se tratava de (tentativa de) furto de coisa de valor insignificante. Para tanto, seria necessário “exame aprofundado das provas e circunstâncias”, o que não se pode fazer quando se está julgando um recurso em sede de habeas corpus. Além disso, deixar de processar o réu levaria a “desprestígio da função preventiva da norma, estimulando a reiteração de delitos”.
O referido acórdão é um documento público e acessível a toda população. Para lê-lo na íntegra, basta clicar aqui. Veja, abaixo, reprodução de um trecho do documento.
Trecho de acórdão do TJ-MG negando extinção de processo contra um desempregado que tentou furtar dois bifes de frango de um mercado / Reprodução
Com a decisão, a tentativa de furto de patrimônio de valor total de R$4 continuou a ser objeto de processo penal, a mover as engrenagens do Poder Judiciário brasileiro. À Defensoria Pública do Estado de Minas Gerais, portanto, restou apenas continuar lutando para inocentar o réu, que não tinha dinheiro para pagar advogado, nem dois bifes de frango.
Assim, no dia 5 de maio de 2020, o órgão defensivo impetrou um Recurso em Habeas Corpus (RHC) perante o Superior Tribunal de Justiça (STJ),. O caso, então, deixou a Justiça de Minas Gerais e foi para Brasília, onde passou a tramitar sob a designação RHC nº 126272.
Tramitação no Superior Tribunal de Justiça do processo por (tentativa de) furto de dois steaks de frango em um mercado de Araxá (MG) / Reprodução
Tendo a ação penal sido distribuída por sorteio à Sexta Turma do STJ, coube, a partir de então, a um colegiado de magistrados sob a relatoria do ministro Rogerio Schietti Machado Cruz – formado em Direito pelo Centro de Ensino Unificado de Brasília em 1984, concluído especialização pela Universidade de Roma “La Sapienza” em 1991, mestrado em 2002 e doutorado em 2007 pela Universidade de São Paulo – debruçar-se e decidir sobre o caso de (tentativa de) furto de dois bifes de frango em um mercado de Araxá (MG).
No dia 7 de junho de 2021, precisamente às 8h05, a corte superior brasileira finalmente proferiu decisão definitiva sobre o caso: com base no princípio da insignificância, a partir daquela data, mais de quatro anos após a sua abertura, restou extinto o processo contra Carlos René Francisco Hipólito, que deixou de responder na Justiça por – alegadamente movido pela fome – (tentar) furtar dois steaks de frango em 17 de abril de 2017.
Nas palavras proferidas em decisão judicial definitiva pelo ministro relator Rogerio Schietti Machado Cruz:
O valor ínfimo dos bens furtados (R$ 4,00) não alcança patamar que evidencie lesão ao bem jurídico tutelado. Nesse ponto, ressalto que os bens foram restituídos à ofendida.
Resta a percepção de que o Ministério Público do Estado de Minas Gerais e o seu Judiciário se houveram com excessivo rigor e se afastaram da jurisprudência remansosa nos Tribunais Superiores para levar adiante um processo criminal de tão notória inexpressividade jurídico-penal.
Para ler a íntegra da decisão do STJ, clique aqui.
O ministro Rogerio Schietti Machado Cruz, com especialização em Roma e doutorado na USP, teve a incumbência de colocar fim em um processo por (tentativa de) furto de dois steaks de frango / Divulgação – STJ