‘Jogo sem fim’ pode ter revanche 40 anos depois

Flamengo e Atlético Mineiro caminham para novo encontro na Copa Libertadores da América em meio a tensão política, vacina e uma rivalidade de quatro décadas, dentro e fora das quatro linhas
Reprodução de TV

Homero Gottardello, jornalista

Pouca gente se dá conta, mas a Copa Libertadores da América, uma das duas mais importantes e tradicionais competições futebolísticas do mundo, homenageia com seu nome dois heróis da luta contra o colonialismo, o venezuelano Simón Bolívar (1783-1830) e o argentino José de San Martín (1778-1850). De modo que é impossível dissociá-la das lutas latino-americanas, como a atual crise política na Colômbia, que obrigou a Conmebol a transferir jogos com mando de campo neste país, e a “campanha” de vacinação que a Confederação Sul-Americana (Conmebol) promove para imunizar os atletas de todas equipes que disputam o torneio. Nesta semana que encerra sua fase de grupos, política e paixão prometem ser reavivadas, já que uma polêmica de quatro décadas, que opõem mineiros e cariocas, pode ganhar um novo capítulo.


É que exatos 40 anos depois do jogo de desempate entre Atlético e Flamengo, no Estádio Serra Dourada, em Goiânia, válido pela primeira fase da Libertadores da América de 1981, pode ocorrer a tão aguardada revanche. A partida, disputada naquele 21 de agosto e que terminou aos 37 minutos do primeiro tempo com a expulsão de cinco jogadores alvinegros, entrou para a história do futebol sul-americano como o “maior roubo da história”. Para os atleticanos, ela tem a mesma dimensão da derrota napoleônica em Waterloo e o árbitro José Roberto Wright, o mesmo caráter de Joaquim Silvério dos Reis, delator da Inconfidência Mineira. Fato é que, com ambos os times classificados para o mata-mata da edição de 2021, há chances de eles se confrontarem até mesmo na finalíssima, dia 20 de novembro, em Montevidéu (Uruguai).

O atacante Reinaldo aplicou um ‘carrinho’ em Zico e acabou sendo expulso por Wright, dando início à confusão – Reprodução de TV


O Galo, que neste sábado, 22, se sagrou campeão Mineiro pela 46ª vez, já garantiu o primeiro lugar no Grupo H e, se na próxima quinta-feira, o Flamengo perder para o Vélez Sarsfield, na última rodada da fase de grupos, o embate pode ser dar até mesmo nas oitavas de final, com o Atlético decidindo a vaga em casa, entre os dias 20 e 22 de julho.
Se do lado mineiro, a eliminação há 40 anos é, até hoje, motivo de discussões acaloradas, de uma revolta perdurável, do lado dos cariocas aquele jogo é lembrado mais pela confusão da arbitragem do que, propriamente, por uma questão perenal. A grande batalha que o Flamengo enfrentou, na Libertadores de 1981, foi o segundo jogo da final contra o Cobreloa, no Estádio Nacional, em Santiago, quando os chilenos criaram um ambiente hostilíssimo para forçar a realização de uma terceira partida – no Maracanã, o rubro-negro venceu por 2 a 1 e, no Chile, perdeu por 1 a 0, tomando um gol aos 39 minutos do segundo tempo.
As quatro décadas que se passaram, desde o jogo do Serra Dourada, foram tempo mais do que suficiente para a consolidação de um mito, capitaneado pelo radialista Osvaldo “Faria” Evangelista (1930-2000), da Rádio Itatiaia, de Belo Horizonte, de que a arbitragem de Wright teria sido encomendada pela Flamengo, pela Rede Globo, pela ditadura militar, enfim, por forças diabólicas e que, diante de tamanha conspiração, a eliminação do Atlético foi inexorável. Pior, há quem acredite, até hoje, que a partida correspondeu à finalíssima da Libertadores da América de 1981. Na verdade, os cariocas tiveram que disputar mais setes partidas, vencendo seis delas, para chegar ao título.

O que ninguém diz, sobre este fatídico episódio, é que se fossem aplicados os critérios de desempate atuais, ao final dos jogos regulares da fase de classificação, o Flamengo avançaria em função do melhor saldo de gols – mineiros e cariocas terminaram empatados, com seis pontos e duas vitórias cada, mas o saldo de gols do rubro-negro foi de cinco gols, contra dois gols dos mineiros. Mais, que foi exatamente esta vantagem que classificou os Flamengo, já que no jogo extra, no Serra Dourada, os cariocas jogavam pelo empate no tempo regulamentar e, também, na prorrogação, dispensando a cobrança de pênaltis para eliminar o Galo – era o regulamento da época e, contra isso, não há o que se fazer.
Na verdade, o mito do “maior roubo da história” ocluiu os torcedores atleticanos e até mesmo a imprensa mineira que, 40 anos após aquela dura eliminação, ainda não conseguem enxergar o concurso de fatores que levaram àquela eliminação. A Libertadores é traiçoeira – talvez, por isso, tão fascinante – e não importa a que altura uma equipe cometa seus erros, porque eles serão cobrados, no final de cada fase, de cada duelo, com juros e correção monetária. E uma observação desapaixonada da campanha mineira, naquela fase de grupos de 1981, revela pelo menos dois tropeços capitais: os empates em 2 a 2, primeiro com o próprio Flamengo e, depois, com o Cerro Porteño, em pleno Mineirão.

Reprodução do Jornal do Brasil


Ambos empates custaram muito caro ao Atlético – inclusive, aos seus cofres. Primeiro, porque no jogo de estreia naquela Libertadores, o Galo abriu 2 a 0 no placar (com Éder, aos 28 minutos do primeiro tempo e aos 18, do segundo), mas cedeu o empate ao rubro-negro quando faltavam cinco minutos para o apito final. Depois, porque deixou o Cerro abrir 2 a 1, em pleno Mineirão, arrancando um empate (com Vaguinho, aos 43 minutos do segundo tempo) no apagar das luzes. A vitória, em qualquer um destes dois jogos, teria colocado os mineiros no triangular semifinal, sem a necessidade do jogo de desempate contra os cariocas.
Outro mito que não encontra amparo probatório é o da “compra” do árbitro José Roberto Wright, que teria recebido um milhão de dólares, uma cobertura em Ipanema, um apartamento em Nova Iorque ou a indicação para apitar uma final de Copa do Mundo, para favorecer o Flamengo. Na verdade, a única “gratificação” neste sentido de que se tem notícia – e confirmação – foi a que o Atlético deu ao Olimpia, pelo empate que os paraguaios seguraram no jogo de encerramento da fase contra os cariocas, em Asunción. Foram Cr$ 3 milhões, em moeda da época, que os bonificaram por garantirem a realização do jogo de desempate – se o Olimpia tivesse vencido a partida e classificado o Atlético, direto, o combinado na peita eram Cr$ 5 milhões.
Já a afirmação de que Wright teria viajado a Goiânia no mesmo avião do Flamengo, esta sim é verdadeira. Mas o time atleticano também embarcou no mesmíssimo voo, que fez escala em Belo Horizonte vindo do Rio de Janeiro, e viajou na mesmíssima aeronave. Ainda é importante frisar que a indicação do árbitro partiu do próprio Atlético, de seu presidente à época, Elias Kalil, e seu vice-presidente de futebol, Marcelo Guzella, em reunião registrada em ata com os presidentes das Federações Mineira e Carioca, além da direção do rubro-negro.
Fato é que o “jogo que não teve fim” pode ser passado a limpo, quatro décadas depois, e só mesmo o anticlímax de uma das duas equipes ficar pelo caminho, antes de um confronto direto, pode dar ainda mais enredo à maior saga do futebol brasileiro. Assim como a luta dos sul-americanos segue infinda, desta vez contra o neoliberalismo imperialista, o armistício entre Flamengo e Atlético pode ser interrompido e esta disputa ter, finalmente, um derradeiro vencedor.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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