500 dias de isolamento: meus 5 pedaços de entretenimento da quarentena, por Carolina de Mendonça

500 dias em casa, de Carolina de Mendonça
Da esquerda para a direita: Fernando Sabino, Os Normais, Gal Costa, Marcelo Gomes e o projeto Aqui Tudo é Manguezal

Estamos completando 500 dias em casa – ou quase isso.

No próximo dia 24 de julho, a primeira medida de distanciamento social motivada pela pandemia da covid-19 no Brasil (implementada no Distrito Federal, em 11 de março de 2020) faz aniversário de 500 dias. Foi um período marcado, literalmente, por centenas de milhares de tragédias – o luto pelas vidas que perdemos e, por baixo dele, o luto pela vida (no singular, a nossa) que deixamos de viver.

Na reclusão, e em meio às mil preocupações, o entretenimento se tornou mais fundamental do que nunca. Como escape, como espelho, como ferramenta de construir e destruir barreiras, como forma de seguir tendo contato com a humanidade. Ver, ler, ouvir ou jogar o que outras pessoas fizeram é absorver um pouco de quem elas são e integrar esse pedacinho a nós, afinal.

Por isso, o Jornalistas Livres reuniu um time de cinco colaboradores que trarão, a cada dez dias até o fatídico aniversário de “quinhentão” da quarentena, uma lista de cinco pedaços de entretenimento que os ajudaram a encarar esse período de alguma forma, da mais simples à mais profunda. Pode ser que essas escolhas sejam as suas também, ou pode ser que elas sejam as dicas que te carregarão pelos próximos dias até a almejada vacinação.

Hoje, enquanto completamos 490 dias de isolamento, seguimos o projeto com a quarta lista, elaborada e escrita pela Carolina de Mendonça, graduanda em Psicologia e colunista na Revista Badaró.

Veja o primeiro, o segundo e o terceiro posts dessa série.

Fernando Sabino – O Encontro Marcado (1956)

Fernando Sabino - 500 dias em casa, por Carolina Mendonça

Leia na Amazon.

Me recordo de encontrar o Sabino pela primeira vez quando assisti ao filme O Menino no Espelho (de Guilherme Fiuza Zenha, 2014) em um festival de cinema infantil com meu primo, na época uma criança. Apesar de não ter lido o livro, que até hoje é uma dívida que tenho, fiquei curiosa com a sinopse, e por ser um filme infantil brasileiro. Me encantei com a história que quase me fez chorar no cinema, mas não li o livro, e nada do Fernando Sabino.

Alguns anos depois precisei ir mais cedo para faculdade e aproveitei para trocar uns livros velhos que tinha por roupas e mais livros. Havia lá um do Fernando Sabino, numa capa vermelha belíssima e em bom estado, uma cópia de O Encontro Marcado. Fiquei meio ambivalente em levar o livro para casa, mesmo minha única experiência com Fernando Sabino (a adaptação de sua obra) tendo sido muito positiva. Felizmente escolhi levar o livro para casa, pois “um clássico nunca sobra na estante”.

Depois de uns meses parado ao lado da minha escrivaninha, tive o impulso de pegá-lo para ler no início da pandemia. Não sabia muito sobre o que era o livro, mas não faria mal, qualquer coisa era só parar. Não parei. Apesar de ser relativamente grosso, 354 páginas na edição que tenho,  li em um período de tempo curto no final do semestre da faculdade, e nos primeiros meses dessa aparentemente infinita quarentena.

Desde aquele 27/05/2020, dia que terminei o livro – um pouco antes, é certo – falo constantemente dele. Fui envolvida pela forma leve com que o Fernando Sabino conduz a narrativa desse menino, Eduardo Marciano, com aspirações a ser genial, que sofre, cresce, se frustra, encontra o amor, se decepciona, passa por experiências incrivelmente banais, bebe, sofre perdas e tem uma vida tão comum que poderia ser de um amigo meu. Ou até mesmo minha. Mas é dele, seja Eduardo ou Fernando.

Eduardo se afoga em si, mas não se encontra. Não muito diferente de como sou na vida, e como estou durante essa pandemia. Li esse livro em casa, mas o levei para todos espaços que me foram possíveis, indiquei àqueles que quero bem. E agora indico a você, que lê esse texto, conhecer as angústias e alegrias desse menino mineiro com sonho de ser escritor que procura a si mesmo.

Os Normais (2001-2003)

Veja no Globoplay.

No tédio de ficar em casa, cansaço de final de período, precisando abstrair do medo de uma doença letal e do contexto fascista em que vivo, escolhi essa série de comédia para acompanhar. Como boa entusiasta do audiovisual brasileiro decidi por uma série curiosa que passava tarde da noite na Globo quando eu era criança. E meus pais, com razão, não me deixavam assistir.

A série fala das neuroses cotidianas de um casal de classe média carioca normal. Mas obviamente, até pela música tema “você é doida demais, doida, muito doida”, o normal ao qual o título se refere mais se aproxima do sinônimo de “comum” que do antônimo de “doido”. O que deixa a série ainda mais interessante.

Apesar de quase 20 anos de estreia, as piadas em maioria não envelheceram mal, como eu esperava, assim como o drama (cômico) da classe média que se mete em situações um tanto absurdas no seu cotidiano.

O texto é uma delícia, pela história se passar no Brasil há diversas referências a artistas nacionais, ao futebol e a aspectos peculiares da cultura do país, dando um senso de familiaridade que eu sentia me abraçar em meio ao horrível momento. O Luiz Fernando Guimarães e a Fernanda Torres são puro carisma, e através de seus personagens por tantos 20 minutinhos me fizeram esquecer dos horrores pessoais e políticos que vivia (e vivo).

Assisti à série no início da pandemia, mas ela também ficou comigo. Assim como o livro de Sabino, a lever como indicação às pessoas queridas à minha volta, e agora a você que está lendo. Mas também é uma série que por diversas vezes me peguei revisitando episódios aleatórios após terminar as três temporadas. Não importa qual meu humor no dia ou qual episódio escolher, essa série sempre consegue me arrancar risadas.

Gal Costa – A Pele do Futuro (2018)

Ouça no Spotify.

Gal Costa é uma cantora que creio dispensar maiores apresentações, mas um breve resumo caso você, caro leitor, não esteja tão habituado com a “Musa da Tropicália”. Como já é de se esperar, ela fez parte do movimento artístico (e político) vanguardista, a Tropicália. A baiana cativou (e permanece a cativar) por sua voz doce e carisma, iniciou a carreira chamando atenção para o sangue sobre o chão, para objetos um objeto não identificado, para a piscina, a margarina, a Carolina (a música de Chico Buarque, não a moça que escreve esse texto) e para a gasolina, tem uma carreira sólida desde a década de 1960. Uma mulher sagrada.

Tive a sorte de ver um show de Gal em fevereiro de 2020. O termo “sorte”, usado aqui, não é apenas uma referência a uma das canções que Gal imortalizou em sua voz, mas por ter sido uma sorte ir ao show, pois o ingresso ganhei de uma escola de arte na qual nem estudava. Em um momento super complicado da minha vida, aqueles que a gente acredita que não tem como piorar (bem, piorou) pude me divertir vendo a apresentação de uma das minhas artistas favoritas. E foi incrível.

Em março, quando foram anunciadas as primeiras medidas restritivas, eu ainda ouvia incansavelmente o álbum daquele show que, até hoje, é um dos últimos que assisti presencialmente. E confesso ainda não ter me cansado desse show. Revejo-o de tempos em tempos, completo (disponível na página no Youtube da Gravadora Biscoito Fino), ou só algumas músicas por vez. Sempre me pego ouvindo as músicas e sentindo saudades. Sinto falta de ir à shows, sinto falta de cantar alguma música de Gal sempre que ia em karaokês, sinto falta de amar romanticamente (e até sofrer por amor), de ir para atos políticos, de estar com amigos. Esse álbum me remete à vida antes da COVID-19, que podia não ser boa, mas havia prazeres (e angústias) que gosto de recordar e desejo mais uma vez experimentar.

Os filmes de Marcelo Gomes

Cinema é uma das minhas maiores saudades nesse período pandêmico. Ir ao cinema, ir a eventos que envolvem cinema, discutir filmes, assistir a filmes em casa. Eu amava cinema. Ainda amo. Sem a possibilidade de vivenciar o cinema presencialmente e dada a necessidade de virtualizar toda minha rotina, inclusive os momentos de lazer, pouquíssimas vezes me senti motivada a parar na frente de uma tela por algumas horinhas para assistir a um filme.

Dos poucos longas metragens que acabei consumindo nesses 490 dias que me marcaram se destaca parte da filmografia do diretor pernambucano Marcelo Gomes, cineasta que estava me aproximando da obra pouco antes do anúncio do fim do mundo.

Os filmes do Marcelo dialogam comigo de uma forma que, confesso, não entendo ainda tão claramente. Mas me deleito na dúvida. Parte possível por na maioria dos filmes mostrar o Nordeste, região que nasci e cresci, e assim ser familiar a mim. Rever alguns longas na pandemia me deu saudades de viajar e passar pelas paisagens da caatinga, como em suas roadtrips Cinema, Aspirinas e Urubus (2005, disponível na Netflix) e Viajo Porque Preciso, Volto Porque Te Amo (co-dirigido por Karim Aïnouz, 2009, também na Netflix). Saudades da vida boêmia numa capital litorânea como em Era uma Vez Eu, Verônica (2012, no Globoplay) que mostra o cotidiano de uma jovem em crise, não tão diferente ou distante de mim. 

A solidão que perpassa as obras do Marcelo me abraçava em meio ao momento mais, objetivamente, solitário da minha vida. Conhecer um pouco mais do Brasil, principalmente do Nordeste, pelos olhos do Marcelo Gomes é delicioso. Os curtas que ainda não conhecia e os filmes que revisito têm sido importantes para lidar com esse momento.

Projeto Aqui Tudo é Manguezal

Projeto Aqui Tudo é Manguezal - 500 dias em casa, por Carolina de Mendonça

Veja no Instagram.

Com o avançar das pesquisas sobre transmissão de COVID-19 foi percebido que há segurança de praticar atividades físicas ao ar livre, mantendo distanciamento, usando máscara e passando álcool em gel após contato físico. Resolvi então, depois de meses, voltar a caminhar em um parque da minha cidade.

Com o início da vacinação, o parque que eu frequentava foi fechado ao público para funcionar como drive-thru da vacina, e eu passei a me exercitar em outro lugar. Passei a caminhar em uma avenida de quatro pistas que divide um pedaço de mangue de prédios residenciais com aluguéis exorbitantes.  Em meio a lama e caos eu me pegava refletindo sobre, dentre outras coisas, o mangue enquanto parte da construção identitária desse litoral nordestino e sergipano.

Em uma das caminhadas me deparei com um lambe-lambe com a frase “Aqui Tudo É Manguezal”, a frase em branco e vermelho cortava uma colagem digital com notícias sobre problemas ambientais que o mangue tem vivido. Com riscos de piora durante a gestão do Ministro do Meio-Ambiente Ricardo Salles que ameaçou a retirada da proteção ambiental deste bioma.

Caminhando um pouco mais nesse mesmo dia encontrei um lambe-lambe de tamanho maior com a mesma frase e desta vez dois rostos (ou máscaras), um rosto negro e um indígena. Dois grupos com intensas contribuições para o estado, mas com suas histórias apagadas e populações violentadas e até mesmo dizimadas.

A intervenção “Aqui Tudo é Manguezal” conta com diversos lambes espalhados pela capital sergipana e com um enorme mural no bairro de Atalaia, zona sul. O projeto híbrido de arte visuais traz referências do movimento de contracultura mangue-beat e como o movimento pernambucano discute a identidade dessas cidades que crescem esmagando a população pobre e a natureza.

As artes expostas a céu aberto do Ateliê Magalenha foram importantes para mim nesse período de redescobrir a cidade em que vivo, e também a minha própria identidade. De tanta paixão e curiosidade pela intervenção entrevistei uma das artistas do projeto, Larissa Vieira. Com os espaços culturais fechados por mais de um ano, foi essencial para mim, inclusive a minha saúde, ter a cidade como uma grande galeria a céu aberto para descobrir e redescobrir. 

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