31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA): celebrar o quê?

Ativista analisa os limites da proteção às crianças e adolescentes pobres, pretas, periféricas e LGBTQIA+ quando o ECA completa 31 anos
Lucas Matheus, 8, seu primo, Alexandre da Silva, 10, e Fernando Henrique, 11, moradores de comunidade em Belford Roxo seguem desaparecidos desde dezembro de 2020.

Por Will Ferreira*

Em 2021 o Estatuto da Criança e do Adolescente (ECA) completa 31 anos. Ou seja: agora neste dia 13 de julho, passamos das 3 décadas da existência do documento que assegura o direito de ser criança à criança e do adolescente ser adolescente – um marco muito importante no nosso país, pois buscou assegurar o direito de viver a infância e o crescer saudável, aliás reforçando a responsabilidade de assegurar e garantir os direitos da criança e do adolescente à família, à comunidade, à sociedade em geral e ao poder público.

A questão que tentamos responder dentro desses 31 anos de estatuto é a seguinte: a quais corpos infantis e adolescentes é permitida a garantia de direitos e a própria vivência de ser criança e adolescente?

Infelizmente ainda hoje, depois de tantos anos de ECA, a realidade nos mostra que ser criança é privilegio para alguns, e que para outros (e aqui trago outro como marcação de lugar na sociedade) o próprio direito à existência é negado.

Will Ferreira (Foto: Lua Angélica)

Falamos de crianças e adolescentes indígenas, pretas, com deficiência, crianças trans e pobres.

Estou dizendo com muito aperto no coração que o ECA não chega e não garante de forma plena a vivencia da infância e da adolescência para aquelas e aqueles que são vistos fora da régua que nos mede, sendo essa régua: branca, hétero, cis normativa, masculina e sem deficiência, e que a partir da visão de “fora da curva” essas existências não só têm seus direitos negados, mas ao mesmo tempo estão largadas a todos os tipos de violência.

Somos uma sociedade adultocêntrica, ou seja, não compreendemos a criança de forma plena e como sujeito ativo na sociedade. Olhamos para elas apenas como fase, pensando no adulto que um dia ela será. Sabe aquela ideia de: “O que você vai ser quando crescer?”. Ela é o exemplo perfeito do que estou falando.

Negamos à criança a sua participação efetiva na sociedade enquanto criança, entendemos a adolescência como fase de transição, e não percebemos a abertura que essa sociedade dá para que crianças marcadas com as ideias violentas e opressoras de inferioridades de raça, invalidez ou disforia de gênero estejam abertas a sofrer todos os tipos de violência, principalmente as violências efetuadas pelo próprio Estado.

Não dá pra discutir ou pensar o ECA sem pensar na violência cotidiana que afeta nossas crianças e adolescentes, ao mesmo tempo em que comemoramos o estatuto como marco de tantas mudanças positivas. Hoje estamos discutindo infanticídio e juvenicídio.

Não é comum escutar essas palavras no dia a dia, mas a essência delas precisa ser desnaturalizada. Vamos entender um pouco mais sobre isso. Vivemos em uma sociedade onde ser pobre é crime, o que teoricamente chamamos de criminalização da pobreza. Essa sociedade tem como princípio a desigualdade como alavanca para que quem é rico e privilegiado receba ainda mais dinheiro e privilégios, incluindo nesses privilégios o direito de ser criança.

Nesse contexto, todas as pessoas que vivem em periferias, quebradas e morros são marcadas pelo Estado, incluindo crianças e adolescentes periféricas. A essa parcela da população a negligência e a violação de direitos são uma realidade constante, incluindo a violação da vida.

Segundo uma reportagem assinada por Cecilia Oliveira para o jornal El Pais em abril de 2021, “100 crianças foram baleadas só no Rio de Janeiro nos últimos 5 anos, sendo que um terço das vítimas foi atingida durante ação ou operação policial e seis em cada 10 crianças foram atingidas na capital”.

Essas mortes não são fatalidades, mas elas nem causam desconforto para a maioria das pessoas, e aqui a marcação que citei acima é de extrema importância, pois segundo a reportagem do jornal 90% das crianças baleadas no Rio de Janeiro eram negras e periféricas.

Não é à toa. Casos de crianças sendo violentadas e assassinadas ganham grande repercussão na mídia hegemônica, mas desde que sejam crianças de classe média e não marcadas pela desigualdade.

O caso do pequeno Henry Borel, enteado do vereador Jairinho (Sem Partido), foi noticiado na TV todos os dias por um longo período devido à extrema brutalidade da situação. Nos causa desconforto pensar na capacidade de uma pessoa adulta diante de uma criança de apenas 4 anos, e assim deve ser, mas por que o caso do pequeno Miguel de 5 anos que foi colocado em um elevador sozinho pela ex-patroa de sua mãe não tem o mesmo peso?

Por que esquecemos do Miguel? Da Ágatha? Do João Pedro? Mas nos lembramos ainda hoje da brutalidade do caso Isabella Nardoni de 5 anos?

Não proponho aqui uma disputa de casos violentos. Proponho, na verdade, uma reflexão de memória. Se os casos que ganharam maior intensidade da mídia são os que você mais lembrou, acredite: isso mostra o quanto essas vidas não são valorizadas da mesma forma. Essa diferença é construída propositalmente para que a máquina da morte continue seguindo e carregando vidas negras de todas as idades. São construções que começam em espaços educacionais que servem à estrutura do Estado.

Pedagogia do racismo

A educação é um dos direitos garantidos pelo ECA, pois é compreendida como essencial para o futuro das crianças e do País, mas são nos espaços educacionais (escolas, creches, jardim de infância, etc) que os valores são demarcados principalmente pela diferença de tratamento entre crianças brancas padronizadas e as crianças marcadas como “outras”. Tais ações valorizam ainda uma cultura e uma beleza branca eurocêntrica em detrimento de tudo que foge a essa regra.

A doutora Tania Mara Pedroso Muller, em Branquitude e Cotidiano Escolar, mostra ao analisar o texto “O meu cabelo é assim… igualzinho o da bruxa, todo armado”,de Flavio Santiago, como essa diferenciação entre as crianças dentro das escolas fere os direitos nas crianças não brancas.

Os meios pelas quais essa norma é estabelecida configuram um processo violento pautado na desigualdade de tratamento entre crianças negras e brancas. Para ele (o autor), quando essas últimas desfrutam de vantagens, desde afetos a exaltação da sua beleza, o que ocorre com as crianças negras, consolida o que o autor nomeia institucionalização de pedagogias fascistas, colonizadoras, ou seja, como ele mesmo chama: pedagogia da branquitude. Ele faz como um modelo pedagógico instaurado a partir do racismo e da ideologia do branqueamento. Essa pedagogia consolida-se nesses espaços, reforçando a violação de direitos da criança negra e a institucionalização hegemônica do branco como padrão de civilidade beleza”.

Não é coincidência que o termo fascista tenha voltado à tona diante do governo atual. É só observar as falas do atual Presidente referente às minorias sociais e de direitos. Nos encontramos diante de um governo fascista e defensor dessa pedagogia que violenta as crianças, adolescentes e suas famílias, ou melhor, nossas crianças e nossas famílias (observação: aqui, apenas um desabafo necessário).

As crianças, ao terem contato com essas violências, as internalizam como verdades sobre si e sobre os outros. Elas sentem os efeitos do racismo, mas aprendem que as coisas são assim e não podem ser mudadas. Muitas sonham com a possibilidade de ser diferente. Não é difícil encontrar relatos de crianças negras que sonham em ser “brancas” e assim se colocam.

Tudo isso na fase da infância causa muita confusão. Uma criança sofre ao ser chamada de preta na frente dos colegas e amigos, mas por que dói? O que há de errado? Eu me perguntava isso quando criança e me lembro de uma situação que hoje me ajuda a entender. Peço licença para compartilhar um momento da minha infância, mas prometo que ajudará nessa reflexão:

Quando estava na primeira série com 6 anos de idade, aconteceu no meio do ano uma excursão para o zoológico. Fiquei muito animado e, com muita dificuldade diante das questões financeiras, minha mãe e meu pai conseguiram pagar o passeio. Lá estava eu junto com meus colegas de sala e com nossa professora, todos juntos passando pelos animais. Quando chegamos nos macacos, um dos meus coleguinhas de sala apontou para um dos macacos e disse bem alto: Olha lá o pai do Wilson! Todos riram me olhando enquanto eu não conseguia ter nenhuma reação. O coração ficou apertado e eu não consigo me lembrar de mais nada daquele dia depois dessa situação.

Eu hoje sei dizer o que me machucou naquele dia, e pra quem leu deve estar imaginando que a comparação do coleguinha foi de muita maldade, isso me lembra uma passagem do filosofo e sociólogo Adorno. Ele disse que: “aquele que é duro contra si mesmo adquire o direito de sê-lo contra os demais e se vinga da dor que não teve a liberdade de demonstrar, que precisou reprimir”. Para muitas crianças marcadas pelo racismo, o que ela mais teme é ter suas características postas em evidencia na frente de outras pessoas.

Meu coleguinha que, apesar de mais claro que eu também era uma criança preta, diante de seu medo canalizou em mim a evidência para livrar-se dos risos que poderiam machucá-lo em algum momento diante da assimilação dos macacos às pessoas pretas. Eu não entendi isso naquela época, mas mesmo assim não foi isso que mais me machucou. O que me machucou de fato foi olhar pra única pessoa que eu sentia que poderia fazer alguma coisa para me proteger da dor do racismo e nada fez. O que me machucou foi o silêncio da professora.

Trago como exemplo minha história para dizer que o silêncio do adulto diante de uma violência ou violação de direitos de uma criança também é violência – e pode causar várias questões psicológicas que acompanharão a criança em todas as fases da vida, além de legitimar e naturalizar as violências do Estado já citadas. Reforçamos com atitudes assim que há algo errado com a criança, reforçamos que ser preta é ruim, ser indígena é ruim, não ser branca é ruim.

Aqui é importante ressaltar que o racismo não é problema de preto, e sim problema de branco, como já vem sendo dito em varias discussões e debates. Acrescento nessa discussão que racismo é problema de adultos, não de crianças. Nós adultos que reforçamos e passamos adiante tais violências. As crianças pouco entendem essas questões, só são ensinadas a agir e a pensar assim.

A advogada Alessandra Devoulsky, coordenadora e diretora jurídica do Instituto Luiz Gama, escreveu no livro Colorismo para a coleção Feminismos Plurais a seguinte reflexão sobre as crianças pretas e o racismo:

“Mais do que entender o que há de errado com ser chamada de “preta” e ter a presença recusada, a criança também não compreenderá a pertinência de ver atribuída a si uma cor que sequer é aquela que melhor corresponde a sua pele. Assim, quando a criança coloca 2 lápis de cor sobre o antebraço, um marrom e outro preto, para entender a razão da segregação, nós, já adultos entendemos que se trata de um detalhe menos importante, mas para a criança é algo fundamental. […] Identificar alguém como “preto” em uma sociedade racista é reservar a ele um lugar de desprezo. É imputar a ele um sentido político de subordinação, pouco importando o que o sujeito acredita ser“.

Nesse contexto, percebemos o quanto a sociedade aponta crianças racializadas (negras e indígenas) para que elas cresçam (quando permitido) marcadas num lugar onde a violência é parte da vida. Deixo como exemplo dois vídeos que já citei em outro texto que escrevi e estão disponíveis no youtube.

Adolescente ou “menor”?

São todas essas coisas citadas que diminuem o peso do problema do racismo na sociedade. A marca acompanha a criança para a fase da adolescência e as reações do adolescente a tudo isso são colocadas em suas próprias costas. A responsabilização da reação as violências sofridas desde criança é discutida como política quando percebemos a quantidade de pessoas que defendem a redução da maioridade penal, aqui ainda separamos os racializados como menor e os não racializados como adolescente.

Uma matéria do portal G1 da Rede Globo tem o seguinte título: “Em Boa Vista, adolescente é assaltado por menor de 15 anos”.

Importante ressaltar que a vítima tem 13 anos e é reportada como adolescente, e o outro adolescente de 15 é retratado como menor, sendo que segundo o próprio ECA é entendido como adolescente “todo aquele entre os 12 anos até os 18 anos de idade”.

Uma outra reportagem do portal Gazeta Online diz o seguinte no título: “Menor infrator de 14 anos assalta adolescente de 16 anos em Linhares”.

Quando você escuta “menor”, como essa figura aparece na sua cabeça? Quem pergunta isso não sou eu, mas sim a matéria que cria a diferenciação e o Estado que cria os preconceitos.

Ao mesmo tempo que vemos crianças negras que sobrevivem à infância mesmo diante de tantas violências sendo preparadas para o cárcere, vemos crianças indígenas sem direito à própria autodeterminação, seja por si ou por seus familiares, não podendo fazer parte da sociedade brasileira e renegadas a uma existência sem direitos civis ou a direitos políticos. Essas crianças são abandonadas pelo Estado. Ainda hoje a mortalidade infantil entre as crianças indígenas é alarmante como demonstrado em relatórios emitidos pelo CIMI (Conselho Indigenista Missionário), que aponta que:

Diversas mortes ocorreram por doenças tratáveis, como broncopneumonia, desnutrição, diarreia, malária ou pneumonia. Um total de 114 crianças vieram a óbito por diferentes tipos de pneumonia. Se levar em consideração o número de mortes nos 3 últimos relatórios, de 2017 a 2019, o aumento dessas mortes foi de 65%, saindo de 40 para 66.

O descaso leva à morte, mas no caso do Estado Brasileiro o descaso é uma estratégia para levar a morte àqueles que têm menos valor numa sociedade racista.

Invisibilidade

Mas não é só às crianças e adolescentes racializados (negras e indígenas) que é negado o direito de ser criança e adolescente. Quando falamos dessas (racializadas), falamos de identidades inferiorizadas. Temos também as crianças e adolescentes marcadas como invisíveis, que são as crianças e adolescentes trans e com graus diferenciados de deficiência. A essas crianças é dito que ser como elas é não é uma possibilidade nessa sociedade.

O filosofo espanhol Paul B. Preciado demonstra usando sua vivência como criança trans que a ele e a outras crianças com experiências parecidas é negado o direito de ser criança, e também os direitos à proteção, à dignidade e à família. No texto “Quem defende a criança queer?”, Paul diz:

O que o meu pai e minha mãe protegiam não eram os meus direitos de criança, mas as normas sexuais e de gênero que dolorosamente eles mesmos tinham internalizado, através de um sistema educativo e social que castigava todas as formas de dissidência com a ameaça, a intimidação, o castigo, e a morte. Eu tinha um pai e uma mãe, mas nenhum dos 2 pôde proteger o meu direito à livre autodeterminação de gênero e de sexualidade. […] Assim, ainda que tivesse um pai e uma mãe, a ideologia da diferença sexual e a heterossexualidade normativa os roubaram de mim. O meu pai foi reduzido ao papel de representante repressivo da lei de gênero. A minha mãe foi privada de tudo o que podia ir além da sua função de útero, de reprodutora da norma sexual.

Acredito que nessa altura na leitura, já estamos condicionados a refletir sobre a violação de direitos que afetam as crianças “diferentes”. Agora podemos entender que a criança diferente é toda criança que esta fora na norma hétero, cis normativa, branca, sem deficiência e masculina.

O recorte de gênero é importante para percebermos que em todas as questões aqui levantadas as mulheres, as mulheridades e as feminilidades são ainda mais violentadas nas esquinas onde tais violências se encontram. Quanto mais atributos “fora da norma”, mais disposta a criança fica a violências diversas, o que não muda na fase da adolescência e adulta.

Paul fala de sua realidade na Espanha quando tinha 7 anos de idade, mas ela não é diferente da situação das crianças “diferentes” aqui no Brasil. Ainda falamos da negação da vida de crianças e adolescentes, mas falamos agora de uma outra forma.

Nas crianças trans, não heterossexuais e com deficiência, falamos de matar a identidade, enquanto sociedade heteronormativa (que entende a heterossexualidade como a natureza, o normal e absoluto do ser humano) entendemos que crianças são moldadas, assim como as massas de modelar que entregamos para elas brincarem. Mas crianças não são vazias. Elas vivem, compreendem, pensam e refletem a sociedade que vivemos, e o Paul no texto que lemos mostra o quanto negar isso a uma criança é negar a ela o direito de ter personalidade e ter acesso aos direitos humanos.

A “criança ideal”

Percebemos que há um recorte específico e cheio de regras para que uma criança tenha direitos, o que podemos chamar de “criança ideal”.

A ideia de criança ideal não é apenas uma constatação pelos fatos que vimos até agora, mas também pelo fato de que entre 1957 e 1958 o jornal Diário de Notícias do Rio de Janeiro lançou o concurso “Em busca da Criança Ideal”. O próprio nome já diz qual o interesse do jornal, porém a doutora Tania Mara Pedroso Muller, no texto: A criança Branca Idealizada pela imprensa no Seculo XX, nos ajuda a entender melhor como o concurso aconteceu e quais os seus verdadeiros interesses.

“Chamou-me a atenção não só o tempo de duração do concurso, mas que, apesar do número de inscritos (5.000) todas as fotografias que acompanhavam as noticias do evento eram de crianças brancas, de cabelos lisos, como também as vencedoras”.

Acrescento na fala da doutora Tânia que as crianças que apareciam também não eram crianças trans e não possuíam grau algum de deficiência. Ressalto também que o concurso era apoiado e reverenciado por muitas figuras políticas e importantes da época, e que entre as regras para a participação das crianças havia a necessidade de comprovantes do que eles chamavam de “Higidez infantil”. As crianças eram avaliadas por médicos em comitês espalhados pelo Rio de Janeiro de forma extremamente rigorosa. Tania conclui ao analisar o concurso que:

Analisar essa campanha pode nos permitir desvendar a imagem da criança desejada pela sociedade, que se utiliza da imprensa para expor seus pensamentos. Por outro lado, a imprensa tinha como função não só um meio de expressão, mas a formação da opinião pública, e por isso a imagem por ela idealizada era expressada cotidianamente em suas páginas“.

Tania reforça aqui algo muito importante nessa discussão. Como visto aqui, a imprensa tem um papel fundamental na formação do imaginário e da opinião pública. A imprensa aparece até aqui em vários momentos vinculando e reforçando muitas das violações que citamos, desde a criança ideal até o menor infrator. Percebemos mudanças positivas referente a isso principalmente em alguns canais de televisão, mas ao mesmo tempo há uma resposta violenta por parte de políticos e figuras públicas conservadoras que se apropriam do Estado para manter seus privilégios.

Discussões como “ideologia de gênero” são o exemplo principal da reação conservadora que se coloca contra a garantia de direito da criança e do adolescente “diferente”. Não há permissão de existência fora da regra na visão de pessoas que fazem questão de levantar pautas como essa. Dizendo-se defensoras da família, essas pessoas negam a todas as crianças o direito de perceberem a pluralidade do ser, de ser e de conviver bem com o diferente de si.

Também é negado à família o direito de ser família de uma criança diferente do padrão. Trazendo Paul Preciado novamente, ele nos permite ter acesso a uma fala de sua mãe anos depois da sua transição, durante um importante marco politico na Espanha, quando foi votado o direito do casamento homossexual em 2005. Sobre seus pais, ele conta:

Eles não se manifestaram só a favor da defesa dos meus direitos, mas também para reivindicar o próprio direito deles de serem pai e mãe de uma criança não-heterossexual. Votaram pelo direito à paternidade de todas as crianças, independentemente do seu gênero, sexo ou orientação sexual. A minha mãe me contou que teve que convencer o meu pai, mais reacionário. Ela me disse “nós também, nós também temos o direito de ser os seus pais”.

Não é diferente quando falamos de crianças com algum grau de deficiência. Qual espaço há pra essas crianças nessa sociedade? qual espaço há em nossas vidas para crianças diferentes do padrão?

Falamos de respeito às diferenças em uma sociedade que ainda trata crianças com algum grau de deficiência como falha. Isso não é garantir direitos, mas sim violência e negligência. Por essa razão, essas crianças são colocadas como invisíveis. Elas não são vistas pelo Estado como parte ativa da sociedade, como detentoras de direitos de viver uma infância tranquila e saudável com possibilidade plena de desenvolvimento.

Nós aprendemos a só olhar para a deficiência quando ela atinge alguém perto de nós, ou a nós mesmos. Até então, todas as pessoas com algum grau de deficiência são apenas invisíveis ou coadjuvantes nesse mundo. Muitas pessoas são simpáticas, mas carregam um olhar de dó que só reforça o preconceito, como disse a respeito de como nos relacionamos com as crianças com algum grau de deficiência na matéria: Capacitismo e deficiência física na infância: Desconstruindo o pré-conceito, para o site https://liderancaeducativa.com.br, a pedagoga e artesã Fabiana Lorenzeti:

“Muitos querem impor às pessoas com deficiência suas vontades, ainda mais quando se trata de crianças. A estética, muitas vezes, é o ponto principal aos olhos de quem leva um sentimento capacitista. Não ter um braço, uma perna, “incomoda o olho do outro” que não aprendeu a lidar com as diferenças, a respeitá-las, a falar sobre elas. Precisamos de mais representatividade em nosso meio social. Precisamos falar sobre deficiência. Na verdade, podemos falar sobre qualquer assunto com nossas crianças”.

Várias camadas de opressão

Capacitismo, que é a discriminação e o preconceito contra pessoas com algum grau de deficiência, e transfobia, que é a discriminação e o preconceito contra pessoas transsexuais e travestis, são violências que se juntam ao racismo e ao machismo para criar marcações e desigualdades que acompanham as pessoas categorizadas como “fora do ideal” a um lugar onde os direitos humanos ainda não chegaram de forma plena.

Essas violências são estruturais, ou seja, elas existem como estratégia para manter a desigualdade e são ensinadas a nós pelo Estado utilizando todas as ferramentas disponíveis, como por exemplo a educação e a imprensa.

Aprendemos então que só há uma forma de existência e que apenas essa forma é humana e tem direito aos direitos humanos, e nem o Estatuto da Criança e do Adolescente rompeu esse muro ainda.

O problema principal na nossa sociedade é achar que pessoas quem não se encaixam na ideia de “criança ideal / pessoa normal” nascem adultas e devem ser culpabilizadas por terem nascido. Elas ficam desamparados pelo ECA e a negligência abre espaço para outras formas de violência, como o abuso infantil, exploração do trabalho infantil, a violência doméstica contra crianças e adolescentes, a violência comunitária, entre outras.

E muitas vezes, como reação a tudo isso, a criança e o adolescente vão sendo afetadas em sua saúde, física e psicológica. Muitas vezes aparecem na infância problemas como isolamento, baixa autoestima, apreensão, desinteresse. Muitas vezes podem aparecer reações mais agressivas, como raiva e estresse.

Já na adolescência, outras questões podem aparecer, como a depressão, ansiedade, reações violentas podem ficar mais latentes, síndrome do pânico entre outras. Nos já assistimos isso acontecendo há bastante tempo e sabemos também que a falta de cuidado e de atenção causadas pelo que estudos nacionais e internacionais chamam de “experiências adversas na infância” podem e levam muitos adolescentes e jovens à automutilação e ao suicídio, e infelizmente o numero só cresce.

Diante da pandemia, vemos que a violência e a violação de direitos vêm intensificando, e sabemos que a maioria das crianças e adolescentes que estão desamparadas são as crianças que citei até aqui. Não há movimento do Estado relacionado a isso.

Aliás, os serviços da assistência como os SPVVs (Serviço de Proteção Social às Crianças e Adolescentes Vítimas de Violência), os Conselhos Tutelares, os CAPS (Centros de Atenção Psicossocial) Infanto Juvenis, entre outros que também são serviços essenciais para a garantia de direitos das crianças e adolescentes, não pararam de atuar e atender durante a pandemia, mas também não receberam nenhum tipo de reforço financeiro ou de apoio logístico ou de fortalecimento para garantir os trabalhos nesse período.

Esses serviços, que já são sucateados e ignorados pelo Estado Brasileiro desde sempre, seguiram durante a pandemia de mãos atadas diante da falta de atenção dos governantes para esta situação, e assim a pandemia segue como mais uma possibilidade de vitimizar nossas crianças.

E agora, diante dos 31 anos do Estatuto da Criança e do Adolescente e de tudo que discutimos até aqui, eu me pergunto: o que o Estado Brasileiro realmente está comemorando?

A gravidade da situação nos obriga a olhar para o ECA com muito cuidado. A comemoração do aniversário do ECA precisa ser combativa e de enfrentamento. Não dá pra comemorar enquanto crianças e adolescentes ainda são violentados e negligenciados pela mão do próprio Estado de forma estratégica.

Demos passos muito curtos com relação à garantia de direitos de crianças e adolescentes, e mesmo assim quando os direitos humanos começaram a chegar nas periferias e nas crianças pretas, trans, não-heterossexuais, com deficiência e nas meninas, temos uma ascensão de ideologias conservadoras que nos colocam num lugar de retrocesso gigantesco.

Hoje, com a comemoração de 31 anos do Estatuto, sinto medo das violências que vitimizam as crianças encaixadas de forma violenta como “OUTRAS” ou “DIFERENTES”.

Precisamos ser firmes em gritar e lutar pelos direitos de todas as crianças serem crianças, viverem a infância sendo elas, tendo de fato direito a dignidade, protegidas pela família, pela sociedade civil e por uma outra forma de organização social que não seja sustentada pelo racismo, o machismo, a LGBTTQPIA+fobia,o capacitismo e o capitalismo, que permitem e permitiram que um genocida liderasse hoje o nosso País.

A necessidade desse grito é pra ontem.

Pelo direito a toda criança existir enquanto criança!

*Will Ferreira tem 32 anos, nascido e criado em Parelheiros (Extremo Sul de São Paulo), é historiador e pedagogo, idealizador e gestor do Espaço Kamohelo, militante e ativista Negro e LGBTQIA+

Artigo original publicado em Periferia em Movimento: http://periferiaemmovimento.com.br/eca31anos/

COMENTÁRIOS

Uma resposta

  1. Este artigo é um “soco no estômago” de nós, cidadãos responsáveis por essa realidade que “não é nossa”, por omissos e indiferentes. Claro, há pessoas, e muitas (como Will Ferreira), mas ainda são gritos isolados.
    Estado omisso, agravado por um contingente governo genocida…

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