2020, um ano que ninguém pode esquecer

Como a memória é uma grande parceira da história, recordar é a melhor forma de garantir que os responsáveis pelo que está sendo feito ao Brasil e ao povo brasileiro tenham o devido lugar no Tribunal Penal Internacional de Haia

A maioria das pessoas está contando os minutos para que 2020 acabe. Definitivamente esse não foi um ano bom, exceto para uns poucos que conseguiram ficar ainda mais ricos em meio à pandemia. Mas se no mundo inteiro milhares de pessoas morreram e outro tanto se preocupou, sofreu e se sentiu insegura, no Brasil a coisa foi e continua muito pior.

Ângela Carrato, jornalista e professora do Departamento de Comunicação Social da UFMG

Quase 40 países já estão vacinando suas populações. Número maior ainda se prepara para dar início ao processo. Aqui a pandemia está descontrolada, já morreram mais de 190 mil pessoas, pelos dados oficiais. Sem testes e subnotificadas, essas mortes seguramente devem ter ultrapassado 230 mil pessoas. E o número não para de crescer.
Não há um plano nacional e coordenado para enfrentar a pandemia e muito menos vacina. E a vida segue com bares, praias, festas e o comércio lotados.
Sem combate à pandemia não tem como se pensar em recuperação da economia, o que significa, em outras palavras, que o Brasil arrisca a enfrentar mais um ano de crise econômica e sanitária profunda, por culpa única e exclusiva do negacionismo, incompetência e subserviência a interesses externos de Bolsonaro, equipe e apoiadores.
De um dos líderes mundiais na economia e no desenvolvimento até 2015, referência em inclusão social, em vacinação e no combate à pobreza, o Brasil virou uma espécie de escória. Como chegamos a essa situação?
Antes dos votos de um feliz 2021, que quase todos merecem, é preciso não esquecer o que foi o ano que está terminando. É preciso rever, com sinceridade e coragem, os muitos erros cometidos pelas chamadas instituições, inclusive as oposições e entidades da chamada sociedade civil. Erros que só não acontecerão outra vez se forem entendidos como tal, criticados e combatidos.

A RESPONSABILIDADE DE MAIA

O primeiro deles é de responsabilidade do presidente da Câmara dos Deputados, Rodrigo Maia (DEM-RJ), que começou o ano sentado sobre uma dúzia de pedidos de impeachment de Bolsonaro e terminou equilibrando-se sobre uma pilha que já ultrapassa 50. Oficialmente, Maia, tinha poderes para colocar em pauta esses pedidos, e não o fez porque preferiu tentar manter Bolsonaro em “rédea curta” a correr o risco de abrir espaço para um possível retorno da oposição (leia-se PT) ao poder.
Até o último momento, Maia jogou o jogo da “elite do atraso” da qual é parte. Jogou o jogo dos irmãos Marinho, da TV Globo, que não cansou de tentar convertê-lo numa espécie de oposição a Bolsonaro. Não deu certo. Depois de buscar, sem sucesso, uma nova reeleição para a presidência da Câmara, sempre com o apoio da Globo, Maia articula a última cartada para sobreviver antes de retornar à insignificância que sempre o caracterizou. Vai tentar emplacar seu candidato na disputa pela sucessão na Câmara.

A RESPONSABILIDADE DO JUDICIÁRIO

O segundo erro é de responsabilidade do Judiciário. Em 2019 já tinha ficado provado que as fake news e os disparos ilegais de mensagens pelo Whatsapp haviam comprometido o resultado das eleições que deram vitória a Bolsonaro, mas também a muitos governadores, senadores e até parlamentares. Era para o TSE ter agido. Deveria ter aberto processo e cassado os que se beneficiaram disso. Não agiu, ao que tudo indica, pelos mesmos motivos de Maia. Preferiu manter Bolsonaro a correr o risco de a oposição voltar ao poder.
O mesmo pode ser dito em relação ao STF sobre a suspeição do ex-juiz Sérgio Moro para julgar os processos contra o ex-presidente Luiz Inácio Lula da Silva. Desde meados de 2019 já era de conhecimento público e, obviamente da Justiça, o teor dos vazamentos publicados pelo The Intercept BR, que mostrou como Moro orientava a promotoria, sugerindo inclusive modificações nas fases da Operação Lava Jato.
O STF, sob a presidência de Dias Toffoli, preferiu fingir que não viu os absurdos e crimes cometidos por Moro. A Segunda Turma do STF, por meio do ministro Gilmar Mendes, chegou a sinalizar que tão logo a pandemia terminasse, colocaria em pauta a suspeição de Moro. Como a pandemia não acabou e nem há perspectiva de quando acabará, ficou o dito pelo não dito. Situação que pode ser entendida também como o famoso “deixar como está para ver como fica”. Em outras palavras, o STF que apoiou o golpe de 2016 contra a presidente Dilma Rousseff, também dá mostras de que teme uma possível volta da oposição ao poder.

A RESPONSABILIDADE DOS MILITARES

O terceiro erro – para muitos o primeiro – é de responsabilidade das Forças Armadas, em especial do Exército. É atribuído aos integrantes desta arma a sustentação a Bolsonaro e a todos os desmandos que tem praticado no poder. Oficialmente, o objetivo dos militares ao apoiar Bolsonaro é o velho lengalenga (herdeiro da Guerra Fria e repaginado pela Guerra Híbrida) do “combate ao comunismo”, já que o combate à corrupção está mais do que desmoralizado por Moro e Dallagnoll.
Na prática, os militares apenas propiciaram que uma família marcada pelas mais diversas denúncias de corrupção se mantivesse no poder, ao mesmo tempo em que o Brasil se torna um pária mundial. Sob Bolsonaro, por exemplo, o país conseguiu a proeza de brigar, ao mesmo tempo, com a China, nosso maior parceiro comercial, e com o presidente eleito dos Estados Unidos, ao insistir na subserviência a Donald Trump quando os próprios estadunidenses já haviam optado por Joe Biden. Some-se a isso que virou as costas para a América Latina e para a África, tentando entrar para o “clube dos ricos” do qual se afasta e será afastado cada dia mais.
Enquanto as chamadas instituições brasileiras continuam passando pano para Bolsonaro, os vizinhos latino-americanos dão adeus ao neoliberalismo e retomam o processo de desenvolvimento soberano e comprometido com os interesses da maioria de suas populações. É o que está acontecendo, por exemplo, na Argentina, Bolívia, Chile, Equador, Peru, México e Guatemala. É o que está acontecendo na Venezuela onde, apesar de toda a pressão dos Estados Unidos para derrubar o governo legítimo de Nicolás Maduro e usurpar o petróleo daquele país, as Forças Armadas de lá e a população resistem.
É importante frisar que mesmo sob embargo comercial dos Estados Unidos, a Venezuela está vacinando a sua população.
O que estaria levando os militares brasileiros a apoiarem um governo marcado por crimes de responsabilidade, que não tem a menor chance de dar certo e que deixará, como já está deixando, como resultado, um país destroçado e uma altíssima conta a ser cobrada de todos que foram e são coniventes com essa situação? Não existe uma só resposta para essa pergunta e elas variam desde o simples interesse pessoal – mais de 2 mil militares estão empoleirados em cargos no governo e Bolsonaro os cobre de privilégios – até a subserviência aos interesses estratégicos dos Estados Unidos.
Que os Estados Unidos, sua liderança militar e o deep state sonhem com a manutenção da hegemonia no mundo, é questão deles. O que é inaceitável é que os militares brasileiros, sem consultar quem quer que seja, cerrem fileiras com os interesses desses setores em detrimento dos interesses dos brasileiros. Inclusive da própria classe dominante brasileira, que não cansa de cavar a própria sepultura.

A RESPONSABILIDADE DA MÍDIA

O quarto erro – para muitos empatado com o papel subserviente das Forças Armadas – é o da mídia comercial brasileira. Quando os seus principais grupos – da Globo à Folha de S. Paulo, passando pela Record, SBT, Editora Abril e Estado de S. Paulo – aderiram ao golpe contra Dilma Rousseff, acreditavam que iriam se dar bem. Leia-se: mais dinheiro, mais prestígio e mais audiência.
O ano 2020 chega ao fim com um quadro muito diferente do sonhado por seus donos. O Grupo Globo conseguiu a façanha de se tornar odiado pela esquerda e pela direita e amarga declínio acentuado. Ao mesmo tempo em que esboça alguma crítica contra Bolsonaro em se tratando do seu negacionismo, abafa as falcatruas de Moro e da Operação Lava Jato, tenta silenciar a oposição, apoia a agenda das privatizações e o desmonte do Estado, e ainda busca emplacar um candidato seu em 2022.
O mais cotado para os irmãos Marinho no momento parece ser o governador de São Paulo, o tucano João Dória. Um assunto da seriedade das vacinas contra covid-19 se tornou, na versão da Globo, mais um item no kit de campanha de Dória para a presidência.
A editora Abril perdeu o prestígio e a importância que tinha e se tornou propriedade do Banco BTG Pactual, aquele que o ministro da Economia, Paulo Guedes, ajudou a fundar. A antiga revista Veja, que chegou a pautar a direita e a extrema-direita brasileiras, virou uma insignificância política e editorialmente falando.


O jornal Estado de S. Paulo tornou-se igualmente propriedade de grupos financeiros, com a família Mesquita apenas figurando em seu conselho de direção. Já a Folha de S. Paulo virou chacota nacional, ao tentar esconder, mais uma vez, com artifícios ridículos – “década” – a importância e o desenvolvimento propiciados pelos governos de Lula e Dilma.
A Record e o SBT, que teoricamente poderiam tirar proveito nesse processo, tiveram suas verbas publicitárias oficiais aumentadas, mas afundam politicamente junto com Bolsonaro e sua turma. Se a Globo abafa as falcatruas de Moro, Record e SBT abafam as denúncias e prisão (já transformada em tornozeleira em casa) do bispo da Igreja Universal e prefeito em fim de mandato do Rio de Janeiro, Marcelo Crivella (Republicanos) e do pastor Everaldo (PSC), que continua preso. Some-se a isso que não falam nada sobre as denúncias envolvendo a família Bolsonaro, seu boicote à vacinação, o incentivo que faz ao uso de armas e a utilização da máquina pública para proteger a própria família.
Com a internet e os veículos alternativos em plena expansão, continuar acreditando que “se não deu na Globo, Record ou SBT não aconteceu” é um delírio que está e vai custar muito mais caro ainda aos dirigentes dessa mídia.

A RESPONSABILIDADE DA OPOSIÇÃO

Os quintos e sextos erros cabem à oposição, dividida entre PT, o maior partido, e as demais agremiações, PCdoB e PSOL. O PDT e PSB, pela crise de identidade que enfrentam, não podem ser considerados oposição. Aliás, nos últimos tempos Ciro Gomes não tem feito outra coisa a não ser tentar aproximar-se do que chama de “centro”, que, na prática, não passa de uma direita repaginada com vistas a 2022.
Como maior partido de oposição, era de se esperar que o PT caprichasse na escolha de nomes para as eleições municipais deste ano. Até porque o partido tem história, tem incontáveis serviços prestados ao Brasil e à população brasileira, tem programa e propostas para sair da crise. Some-se a isso que poderia ter usado o espaço que dispunha no horário eleitoral para denunciar o governo Bolsonaro e a gravíssima crise na qual o país está mergulhado. Seria, inclusive, uma forma de fazer frente ao “ódio ao PT” disseminado pela mídia.
Não se sabe o motivo, mas os candidatos do PT não fizeram nem uma coisa e nem outra, com honrosas exceções, a exemplo de Marília Arraes, em Recife, e Margarida Salomão, em Juiz de Fora (MG). Os demais candidatos se apresentaram, na maior parte do tempo, defendendo plataformas estritamente municipais, quando se sabe que a maior parte dos problemas das cidades brasileiras tem origem nos desmandos do governo federal. Alguns candidatos, inclusive, esconderam ou minimizaram a presença de Lula no primeiro turno. E se temiam perder ou não ir para o segundo turno, sem Lula é que não foram mesmo.
O PT e os demais partidos de oposição agiram corretamente ao lançar candidatos próprios no primeiro turno. A proibição de coligações para a disputa proporcional (Câmaras Municipais) e a espada representada pela cláusula de barreira (regra que determina que agremiação com menos de 5% dos votos nacionais não terá direito a representação partidária) não lhes deixou alternativa. Lamentável, no entanto, foi assistir muita gente que se diz de esquerda criticando tais posturas e tentando jogar a responsabilidade por derrotas da oposição nas costas da própria oposição.
O PSOL e o PCdoB agiram certo ao buscar ocupar o máximo possível de espaço para seus candidatos, especialmente em cidades da importância de São Paulo e de Porto Alegre. Guilherme Boulos e Manuela Dávila foram gigantes. Mesmo enfrentando todo tipo de fake news, de preconceitos e de ojeriza da “elite do atraso”, as propostas que contemplam os interesses populares deram uma grande contribuição para que o negacionismo, a mentira e a ignorância e o preconceito pudessem ser confrontados.

No caso de Boulos, é importante frisar que ele denunciou, até quase perder a voz, a manobra do governador de São Paulo no que diz respeito à pandemia. Para evitar dar razão a Boulos e proteger o candidato tucano Bruno Covas, Dória atrasou em quase um mês uma série de providencias contra o covid-19 que, se tivessem sido adotadas no tempo certo, poderiam ter evitado a morte de milhares de pessoas. É importante lembrar, até porque a mídia comercial esconde isso: se Dória defende a vacina, São Paulo é o estado com o maior número de mortos e infectados por covid-19 no Brasil. E o governador tem muita responsabilidade nesses números.
Quanto ao PDT, ao PCdoB e ao PSB, no momento parecem debruçados diante da hipótese de uma fusão. A fusão em si não é algo ruim, mas o problema é a falta de personalidade da sigla que pode daí resultar. Se o governador do Maranhão, Flávio Dino (PCdoB), tem se mostrado um político competente e um administrador dos mais capacitados, ele não tem nada a ver com o coronelismo explícito do ex-governador do Ceará, Ciro Gomes, e com os absurdos que Ciro tem dito e feito em relação à oposição, a começar por ter ido para Paris no segundo turno das eleições de 2018. E, como dizem seus adversários, pena que não ficou por lá.

A RESPONSABILIDADE DA SOCIEDADE CIVIL

O último erro – e talvez o mais sintomático de todos – cabe à chamada sociedade civil brasileira.
Tão importante e atuante para o fim da ditadura, nos anos 1970 e início de 1980, a maioria dos brasileiros agora parece anestesiada. Anestesia que começou bem antes da pandemia e ainda perdura. Já está mais do que provado que o impeachment de Dilma foi golpe, pois não houve crime de responsabilidade, que o ódio ao PT foi criado artificialmente pela Lava Jato e sustentado pela mídia, que as acusações contra Lula são mentirosas e que o país retrocedeu 40 anos em quatro sob qualquer aspecto que se queira analisar.
O que mantém os brasileiros calados e uma parcela – algo em torno de 30% – ainda apoiando Bolsonaro? Novamente não existe uma só resposta. Para alguns, uma enorme responsabilidade pelo negacionismo, pela burrice e estupidez que passaram a vigorar em nossa sociedade, tem a ver com o boom de templos pentecostais e as promessas mentirosas da “teologia da prosperidade”, versão primária da meritocracia, tão cara à “elite do atraso”.
Outra resposta possível é que setores envergonhados pelo que fizeram nos últimos anos, insistem em manter o erro. É o caso, por exemplo, dos Conselhos Regionais e do Conselho Federal de Medicina, que combateram o Programa Mais Médicos, criado pelo PT, e não esboçaram, até agora, a menor crítica aos absurdos e ao charlatanismo de Bolsonaro em relação à pandemia. Tiraram os médicos cubanos e não foram para a linha de frente no enfrentamento ao vírus, especialmente nas comunidades pobres e nos rincões mais longínquos.
O resultado de tantos erros não poderia, jamais, redundar em acertos. Tanto que o ano termina com o Brasil mergulhado em notícias de feminicídios, assédio sexual dentro de uma Casa Legislativa, milhões de pessoas sem emprego e sem ter o que comer, enquanto nossas florestas foram destruídas por incêndios criminosos e nossa maior empresa, a Petrobras, vem sendo esquartejada e vendida a preço de banana.
Como a memória é uma grande parceira da história, recordar é a melhor forma de garantir que os responsáveis pelo que está sendo feito ao Brasil e ao povo brasileiro tenham o devido lugar no Tribunal Penal Internacional de Haia.
Daí 2020 ser um ano que não pode ser esquecido.

Este texto não reflete, necessariamente, a opinião do Jornalistas Livres

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