Por Jana Sá, da Agência Saiba Mais
Passados 10 anos da instalação da Comissão Nacional da Verdade no Brasil, é inegável a sua importância contra o revisionismo e sua reverberação em nível estadual, municipal e instâncias públicas. A avaliação é do cientista social e professor da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, José Willington Germano, depoente e colaborador do trabalho da Comissão da Verdade no âmbito da UFRN.
“Penso que a criação da Comissão da Verdade foi uma atitude extremamente importante da ex-presidenta Dilma Rousseff. Importante porque ela possibilitou que fossem reveladas publicamente atrocidades e crimes contra a humanidade, como a tortura, assassinatos, desaparecimentos de presos políticos e assim por diante. A repressão política tornou-se mais visível”, afirmou o professor.
As comissões da verdade são consideradas ferramentas para possibilitar o direito à verdade e à memória, sobretudo sobre períodos de regime autoritários. No caso do Brasil, as comissões foram instaladas para investigar, pesquisar e trazer a público as muitas violações de direitos humanos praticadas por agentes de Estado entre 1946 e 1988, para, a partir daí, recomendar políticas públicas capazes de prevenir a repetição das ocorrências que foram normatizadas.
Apesar de tardia, a criação da primeira Comissão da Verdade no Brasil, em 16 de maio de 2012, portanto quase 30 anos anos depois do fim do regime militar, composta por sete membros indicados diretamente pela presidência, cumpriu as atividades programadas para realização do seu objetivo de solicitar informações, dados e documentos de órgãos públicos, e colher depoimentos ou testemunhas relacionadas à investigação de fatos e promover audiências públicas.
Após dois anos e sete meses de trabalho, a comissão emitiu o relatório final em dezembro de 2014, responsabilizando todos os generais que ocuparam a presidência da República durante a ditadura militar pela autoria de graves violações de direitos humanos. Para a CNV, a violação a direitos humanos se constituiu numa prática sistemática do Estado no período analisado, com uma cadeia de comando que chegava à presidência da República. Ao todo, foram responsabilizadas 377 pessoas. A estimativa é que cerca de 20 mil tenham sofrido tortura, outras 191 tenham sido assassinadas e 243 permanecem desaparecidas.
Cumprindo com uma das ações programáticas do sexto eixo do Terceiro Programa Nacional de Direitos Humanos (PNDH-3), a Comissão da Verdade apresentou o conjunto de 29 recomendações ao Estado, incluindo a supressão de parte do texto da Lei de Anistia, a fim de responsabilizar o crime de tortura praticado por agentes públicos e privados durante o regime militar. Antes, porém, em ofício encaminhado à CNV, militares afirmaram que não iriam se opor ao processo de responsabilização do Estado pelas violações. Era a primeira vez que o Estado reconhecia publicamente sua responsabilidade pela ocorrência de crimes na ditadura.
Durante a vigência dos trabalhos, a CNV preparou oito relatórios preliminares de pesquisa, coletou mais de 1.000 depoimentos, realizou 80 audiências públicas e percorreu todo o país com etapas investigativas. O primeiro e o quarto relatórios fornecem informações sobre as instalações militares usadas para tortura e centros clandestinos de violações dos direitos humanos.
E no que pese as Forças Armadas terem afirmado apoiar a CNV, depois de modificado o projeto de lei e respeitado integralmente a Lei da Anistia, até a conclusão do relatório final de atividades, a Comissão encontrou dificuldades para apurar documentos sobre o regime militar, e a colaboração das Forças Armadas chegou a ser questionada em diversos momentos pelo Ministério Público Federal, por não reconhecerem a responsabilidade institucional pelas graves violações de direitos humanos.
Visibilidade
As discussões em torno de assassinatos, desaparecimentos forçados, tortura, ameaças e tantas outras violações consideradas como graves violações à humanidade ganharam uma visibilidade inédita no país. Com as comissões da verdade, o tema da ditadura militar, o que ela representou e a negação até então imposta, sobre o terror estrutural embutido desde os corredores burocráticos até a criação de um Estado paraestatal esteve nos principais jornais nacionais, nos grupos de estudos da academia, nas escolas e, em certa medida, até mesmo nas rodas de muitas conversas.
Sem desconsiderar, é claro, que esta luta estava sendo realizada há muitos anos pelos familiares de mortos, desaparecidos e resistentes à ditadura militar. No entanto, mesmo não tendo sido o primeiro instrumento de justiça de transição no Brasil, a CNV foi aquela que ganhou maior visibilidade em meio ao grande público.
“Essas denúncias já vinham sendo feitas, como no livro organizado pela Arquidiocese de São Paulo, “Brasil: nunca mais”, a exemplo do seu similar argentino, “Nunca mais”, organizado pelo consagrado escritor Ernesto Sábato. Denúncias que já vinham sendo feitas, também, pelas vítimas do regime militar ditatorial e por estudos acadêmicos. Com a Comissão da Verdade (ou Comissões, uma vez que foi capilarizada por diversas instâncias e instituições), foi o próprio Estado que agiu para tornar público aquelas atrocidades e com isso possibilitando a reparação das vítimas, abrindo a possibilidade de condenação dos agressores”, ressalta Willington Germano.
As comissões no RN
A iniciativa nacional desencadeou uma série de outras iniciativas que resultaram em criações de comissões da verdade em outros níveis. No Rio Grande do Norte, o comitê estadual pela Verdade, Memória e Justiça, e a Comissão Municipal da Verdade da Câmara Municipal de Natal foram lançados em 13 de julho de 2012, no Palácio Frei Miguelinho, sede do Poder Legislativo municipal, mas não chegaram a funcionar.
Em Natal, a Lei que criou a Comissão da Câmara dos Vereadores é de autoria da vereadora à época, Sargento Regina, e o então vereador George Câmara, autor da emenda que deu o nome de Comissão Luiz Maranhão, ex-deputado estadual, jornalista, advogado e professor universitário, preso, torturado e morto pelo regime militar. Entretanto, a prefeita Micarla de Sousa nunca designou seus membros para que fosse instalada. Da mesma forma, não foi instituído em âmbito estadual o comitê pela Verdade, Memória e Justiça.
Para Roberto Monte, coordenador do Centro de Direitos Humanos de Natal, a partir da instalação do comitê e da comissão, a ideia era fazer o debate sobre o papel da ditadura no sequestro, prisão e assassinato de militantes políticos de esquerda.
“Estávamos nos governos Rosalba e Carlos Eduardo. Nossa estratégia foi montar inicialmente a Comissão da Verdade do Município, que chegou a ser montada com Horácio Paiva e Roberto Furtado à frente da mesma, além de pessoas de nosso grupo. Na sequência, a ideia seria montar a Comissão da Verdade RN, comigo e Antônio Capistrano à frente. Tivemos uma ampla articulação com Gilney Viana, na época no Ministério dos Direitos Humanos da Presidência da República. Horácio era uma figura chave nisso tudo, pois era consenso e tinha pontes que necessitávamos. A Comissão chegou a sair no Diário Oficial, mas tivemos um problema muito sério, pois logo após ele teve um problema de saúde e precisou se afastar. Toda aquela articulação foi por água abaixo e junto com as baixas possibilidade do governo Rosalba, tudo foi por água abaixo”, afirmou Monte.
Roberto, que desde a década de 1970 estuda a questão da violação aos direitos humanos no Rio Grande do Norte, já tinha uma série de documentos a serem publicados quando a presidenta Dilma instalou a CNV. A primeira obra da coleção intitulada “Repressão no RN” foi o “Relatório Veras”, produzido por uma Comissão Especial de Investigações no governo de Aluízio Alves, em 1964, logo depois à decretação do golpe militar. Era uma relação com nomes, fotos e ocupação de pessoas consideradas subversivas pelo regime. O relatório serviu de base para a instauração de um Inquérito Policial Militar, assinado pelo então governador no dia 17 de abril de 1964. Recebeu esse nome em referência ao delegado que cuidou do caso, Carlos Veras.
A série “Repressão no RN” também expôs documentos sobre as torturas na Base Aérea de Natal, que nas décadas de 1950/1960 ficou conhecida como “campo de concentração de Parnamirim”.
“Poucas pessoas falam, mas, acho que no inconsciente coletivo da cidade, todos sabem das bárbaras torturas sofridas por Luiz Inácio Maranhão Filho, Vulpiano Cavalcanti, Heider Toscano e muitos outros, que inclusive faziam parte da Universidade. Isso tudo leva-nos a uma questão de 12 mortos e desaparecidos políticos”, pontuou Roberto.
Há uma estimativa, segundo Monte, de que a Comissão da Anistia tenha hoje uma média de 70 mil processos. A busca do Centro de Direitos Humanos de Natal é conseguir, junto à Comissão, saber quantos e quais são do Rio Grande do Norte ou tiveram participação do Estado.
“Nós temos um universo de 70 mil, mas, imagina-se que cerca de 100 mil pessoas tiveram algum tipo de sanção na época da ditadura militar. E, com todas essas Comissões, Comitês da Verdade, no legislativo e judiciário, na competência estadual e municipal, dos próprios Comitês, o que nós temos oficialmente do Governo brasileiro, que é aquele documento de capa cinza, “grossão”, são 475 pessoas. Mas, começam a aparecer os crimes, eles são muito maiores. Porque desses 475, a Secretaria Especial da Presidência da República, através do companheiro Gilney Viana, realizou, hoje, uma pesquisa sobre a questão do campo e acrescentaram as 475, 1.163 pessoas que morreram ou desapareceram no campo”, avalia Monte.
Para o pesquisador e ativista, hoje é possível constatar que, “em 1964, não precisou de DOI/CODI, não precisou de Operação Bandeirantes, porque os próprios fazendeiros, as próprias pessoas do campo desapareceram, os negros fubás, todo esse povo ligado às Ligas Camponesas. Imaginava-se que Vírgílio Gomes da Silva, proveniente de Lagoa de Velhos, é desaparecido político do Brasil. Ele que comandou o sequestro do Embaixador Americano. Esse rapaz levou tanta “porrada” no DOI/CODI, que o único órgão intacto dele foi o coração. Quer dizer, a partir de 1964, a repressão foi muito mais “barra-pesada” e, portanto, a visão que se tem oficial é apenas uma visão urbana”.
Comissão da Verdade na UFRN
Coube à UFRN a contribuição com os trabalhos da Comissão Nacional da Verdade, já que os campi universitários foram palcos de inúmeros ataques, invasões e perseguições durante a Ditadura. Fruto da pressão de estudantes do Centro Acadêmico Amaro Cavalcanti (CAAC), que na VII Aula Magna do Curso de Direito entregaram um documento à Reitoria, intitulado “Pela Abertura da Comissão da Verdade do Rio Grande do Norte”, a Comissão da Verdade da UFRN foi instalada em 18 de dezembro de 2013.
Apesar de em todos os países da América Latina, onde foram instauradas Comissões da Verdade, não haver registro de que trabalhos específicos nesse sentido tenham sido realizados dentro de universidades, as comunidades acadêmicas no Brasil integraram o objetivo de examinar e esclarecer as violações aos direitos humanos praticadas pelo governo militar, no período da ditadura.
Dessa forma, a comissão da UFRN pesquisou durante três anos as ações do regime militar na universidade e produziu um relatório com 489 páginas, lançado oficialmente em ato público no auditório Otto de Brito Guerra, prédio da reitoria.
Os diversos estudos realizados e 51 depoimentos coletados ajudaram a relatar a atuação do regime militar na universidade e as mortes de dois estudantes e de um professor associados à instituição.
Potiguares, os alunos Emmanuel Bezerra dos Santos e José Silton Pinheiro e o professor Luiz Ignácio Maranhão foram reconhecidos como vítimas da ditadura militar pela Comissão Nacional da Verdade. Dentre esses desaparecimentos e mortes que ocorreram nos estados do Rio de Janeiro e São Paulo entre 1972 e 1974, há também relato da morte do estudante potiguar Zoé Carlos de Brito.
O natalense Luiz Ignácio Maranhão Filho, irmão do ex-prefeito Djalma Maranhão, desapareceu em 1974 e, de acordo com a CNV, quando preso teria passado por tortura nos estabelecimentos do Destacamento de Operações de Informações/Centro de Operações de Defesa Interna (DOI-CODI), nas cidades do Rio de Janeiro e São Paulo. Seu corpo nunca foi localizado pela família.
O estudante da Faculdade de Sociologia, Emmanuel Bezerra dos Santos, foi preso e condenado após a edição do AI-5. Natural de São Bento do Norte, foi dirigente do Diretório Central de Estudantes (DCE) da UFRN e foi morto por tortura nas dependências do DOI-CODI de São Paulo, em 4 de setembro de 1973. Foi enterrado em SP como indigente e depois de ter o corpo localizado pelos familiares, seus restos mortais foram exumados e trazidos para Natal.
Nascido em São José de Mipibu, José Silton Pinheiro também foi enterrado como indigente. Segundo a Comissão da Verdade da UFRN, o estudante de Direito foi morto e seu corpo carbonizado em ação comandada pelo DOI-CODI do Rio de Janeiro. Morreu em 1972, aos 23 anos, como “Inimigo da Pátria (terrorista)”, segundo registro da sua certidão de óbito.
Depoimentos do relatório da Comissão registram ainda o assassinato pelo aparato do regime militar do estudante potiguar Zoé Carlos de Brito, natural de São João do Sabugi. Divergindo da versão oficial de sua morte em uma estação de trem, em São Paulo.
De acordo com o documento final da Comissão da Verdade, antes que a estrutura do prédio se concentrasse no campus central, a universidade tinha seus prédios espalhados por toda a cidade e tornou-se palco de pelo menos quatro prisões militares. Depoimentos apontam algumas circunstâncias em que as aulas foram interrompidas e as pessoas retiradas para interrogatório. Os depoimentos também falam das torturas sofridas por unidades militares em Natal e Recife.
Segundo o relatório da comissão, o status ideológico passou a ser critério importante nas dispensas e contratações da UFRN. Dessa forma, mais de 20 docentes não foram exonerados ou não tiveram efetivados seus contratos na universidade por motivações políticas. As práticas relatadas incluem também interceptar cartas, proibir estudantes de participar de eventos e assembleias, inspecionar publicações e conduzir investigações militares.
Essas informações eram obtidas por ação da ASI com o objetivo de direcionar as contratações. Na UFRN, a assessoria de segurança foi instalada no ano de 1971. Funcionou no prédio da reitoria e na Biblioteca Central Zila Mamede. Deixou as dependências da universidade em 1985, mas só foi extinta em 1990.
Resultados da Comissão da UFRN
Diante de tudo que foi levantado, em 2015 a Comissão da Verdade finalizou seus trabalhos com uma série de 12 recomendações à Universidade Federal do Rio Grade do Norte. Destas, seis são gerais e administrativas, e fazem parte dos esforços de manutenção da memória histórica e da construção da verdade pública, conforme especificado na Diretriz 24, do VI eixo do PNDH-3.
Recomendações gerais propostas pela Comissão da Verdade da UFRN
Recomendações | |
Primeira | Utilização do prédio histórico onde funcionou a Faculdade de Direito da UFRN para abrigar o acervo documental e audiovisual sobre o período da ditadura civil-militar e o material produzido pela Comissão da Verdade da UFRN, em forma de memorial da resistência universitária. |
Segunda | Fazer o reconhecimento simbólico e público da violação aos direitos humanos contra membros da UFRN; e homenagear, com as cautelas estatutárias, os professores e alunos assassinados e, de alguma forma, vilipendiados pelo regime discricionário, consoante já registrados neste Relatório com a colocação dos seus nomes em memoriais e logradouros das unidades pertencentes a UFRN e espaços da administração universitária em cerimônia oficial; criação de obras ou painel artístico em que se registre os reflexos do regime de exceção nas atividades acadêmicas e administrativas, mediante abertura de Concurso Público destinado aos artistas plásticos da própria universidade. |
Terceira | Fazer aposição de placa simbólica no local onde funcionou a extinta Assessoria Especial de Segurança e Informações da UFRN (Subsolo da Biblioteca Central Zila Mamede), com alusão à sua função repressiva. |
Quarta | Recomendar que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a título simbólico e com as cautelas estatutárias, proponha ao Conselho Universitário a revogação de todas as Resoluções autoritárias dele emanadas, durante o período da ditadura, que tiveram por objeto o tolhimento das liberdades constitucionais de manifestação, pensamento e liberdades didático-científica, patrimonial, financeira e administrativa. |
Quinta | Providencie um acondicionamento ideal para o acervo de documentos do Arquivo Geral da Universidade Federal do Rio Grande do Norte, notadamente os que dizem respeito à memória institucional e administrativa, na parte que toca às antigas Faculdades, Escolas e Institutos. |
Sexta | Que a Universidade Federal do Rio Grande do Norte incentive a publicação de trabalhos sobre o período da Ditadura Militar e os seus reflexos no Rio Grande do Norte e na UFRN, como igualmente criando bases de pesquisa sobre esse tema. |
O relatório aponta que 316 pessoas foram alvo de algum tipo de intervenção militar da UFRN entre os anos de 1964 e 1985. O regime prendeu cinco professores e 33 alunos; expulsou 25 professores e dois alunos por motivos ideológicos; torturou ou submeteu a situações degradantes 13 membros; através do Decreto-Lei nº 477, expulsou um estudante; 10 membros foram reprimidos politicamente sem serem presos; dois estudantes foram assassinados; um professor é considerado desaparecido político; e 259 pessoas foram fichadas pelos órgãos de repressão e informações da ditadura militar.
Um dos episódios mais marcantes dessas investigações é referente ao Inquérito do Restaurante Universitário (RU). Pela primeira vez no Estado, antes do ano de 1968, quando foi decretado o AI-5, lideranças expressivas, a exemplo do Emanuel Bezerra dos Santos, foram presas e condenadas.
Dificuldades
Entre as maiores dificuldades encontradas no trabalho de esclarecimento da verdade na Universidade Federal do Rio Grande do Norte, a professora Ângela Paiva Cruz, reitora à época da instalação e funcionamento da Comissão, relata em seu texto de apresentação do relatório final problemas “que vão da triste diligência dos que fizeram desaparecer documentos à recusa dos que optaram por não colaborar, prestando as informações solicitadas pela comissão”.
Não é possível negar o fato de que a criação da CNV ter acontecido quase trinta anos após o fim do regime militar tenha comprometido muitas das pesquisas, afinal, muitos documentos foram destruídos e memória das pessoas que vivenciaram as violações não era mais a mesma. Mas, ainda assim, é melhor a execução de políticas de memória de forma tardia e não necessariamente ideias, do que a não ocorrência, o abandono e o esquecimento completo de um passado repressivo que mantem nos traços formativos de uma sociedade características que se distanciam de políticas que salvaguardam os direitos humanos.
Com as comissões da verdade, o tema da ditadura militar, o que ela representou e a negação até então imposta, sobre o terror estrutural embutido desde os corredores burocráticos até a criação de um Estado paraestatal esteve nos principais jornais nacionais, nos grupos de estudos da academia, nas escolas e, em certa medida, até mesmo nas rodas de muitas conversas. Além, é claro, que a iniciativa nacional desencadeou uma série de outras iniciativas que resultaram em criações de comissões da verdade em outros níveis.
“Os militares governaram o país por quase 1/4 do século XX. Ninguém governou tanto. A mais longeva ditadura militar da América Latina. Por isso são os que mais se enquistaram nas estruturas do Estado. O resultado é o que estamos vendo hoje: apoio explícito ao governo Bolsonaro, questionamentos diretos das urnas eletrônicas e, portanto, das eleições. Em que país do mundo isso acontece?! Ameaças ao Supremo, como Twitter do General Villa-Boas na véspera do julgamento de Lula. Intervenção no Rio de Janeiro pós golpe de Estado de 2016 e assim por diante. Sempre contra a democracia, mas dizendo que estão buscando salvar a democracia. Até quando foi implantada a Ditadura com D maiúsculo, com o AI-5, em 1968, a justificativa era para salvar a democracia. Sempre contra as lutas e os movimentos sociais, sobretudo nos pós 1945, dizendo estão em defesa da ordem. Esse empoderamento extremo, de quem tem as armas, faz com que qualquer comentário crítico seja considerado uma ofensa às forças armadas. Esse é o Brasil dos nossos tempos”, ressalta o professor Willington Germano.
A falta de compromisso de setores militares e civis comprometidos com a ditadura aliada ao pacto de silêncio feito no processo de redemocratização brasileira a partir da Lei de Anistia, dificultou ou mesmo impossibilitou o acesso a depoimentos e arquivos importantes no esclarecimento das circunstâncias das violências cometidas pelo Estado contra quem se opunha ao regime civil-militar.
Uma realidade enfrentada nacionalmente, mas que ainda assim não significou a paralisação do processo ou prejuízo ao seu curso, apenas aos resultados. No que pese o trabalho investigativo tomar com base não apenas o testemunho, mas também a análise de documentos, em três anos de funcionamento a CNV coletou 1.116 depoimentos em 483 em audiências públicas e 633 em reservas, recomendando ao final medidas administrativas, de caráter educativo, de fortalecimento dos mecanismos da democracia de responsabilização, a fim de que não se repitam comportamentos autoritários e desumanos.
“Ignorar os resultados desse trabalho significa promover a negação e recriar o pano de fundo das atrocidades da ditadura militar. Por isso, nós, que fomos vítimas desse período, vemos com muita preocupação a interrupção do seguimento das recomendações da Comissão Nacional da Verdade pelo governo autoritário do Bolsonaro”, considera Fátima Sá, anistiada política e companheira do ex-guerrilheiro do Araguaia, o potiguar Glênio Sá.
Na contramão dos resultados da Comissão Nacional da Verdade, da Comissão de Anistia e da Comissão Especial de Mortos e Desaparecidos, o Ministério da Defesa, tem convocado, desde o início do governo Bolsonaro, a comemoração ao dia do Golpe de 1964, avaliando-o como um dia simbólico de aproximação com as aspirações da sociedade brasileira.
Para o professor Willington Germano, uma revisita ao negacionismo histórico. “Num país em que a lei da anistia foi feita pelo regime ditatorial e livrou os seus que praticaram crimes de tortura, num país em que não houve justiça de transição e em que a Constituição de 1988, no que pese muitos avanços, conservou dispositivos que tornam possível a intervenção militar nos assuntos internos, inclusive na política. Foi um avanço e Dilma pagou caro por isso, sendo inclusive golpeada. Por isso estamos vendo hoje a intervenção dos militares na política em defesa do governo de extrema direita de Jair Bolsonaro, inclusive com ameaças ao processo eleitoral de 2022”.
Desmonte das políticas de memória no Brasil
O Governo Federal promoveu ainda um desmonte da Comissão de Anistia e da Comissão Especial de Mortos de Desaparecidos Políticos. Através da portaria 378, do Ministério da Mulher, Família e Direitos Humanos, nomeou militares, sem qualquer afinidade com a matéria dos direitos humanos ou com o conhecimento mínimo sobre anistia e memória, para o cargo de Conselheiro da Comissão de Anistia. O Ministério Público Federal contestou a nomeação para a Comissão de Anistia via Ação Civil Pública. E em 31 de julho de 2019, um decreto presidencial exonerou os membros da Comissão Especial sobre Mortos e Desaparecidos Políticos sem justificativa e motivação legítimas. Esse decreto também é objeto de Ação Civil Pública pelo Ministério Público Federal.
“Até agosto do ano de 2019, essa comissão vinha sendo coordenada pela doutora Eugênia Gonzaga, procuradora Federal, que foi nomeada pela presidente Dilma Rousseff, e que vinha desenvolvendo um grande trabalho. Inclusive promoveu um encontro de familiares em dezembro de 2018. Essa comissão estava trabalhando em fazer as retificações dos atestados de óbitos dos desaparecidos”, afirma Diva Santana, irmã da desaparecida política Dinaelza Santana.
A comissão vinha desenvolvendo também buscas com arqueólogos, de trabalho com as ossadas do cemitério de perus. Segunda Diva Santana, “na época que a Erundina foi prefeita de São Paulo, se conseguiu tirar mais de mil ossadas e, destas, quatro já foram identificadas. Duas bem recente, uma delas do Aluísio Palhano, que consta em todos os pareceres dos ex-presos políticos, inclusive da Inês Etienne, e de outros torturadores que conseguiram falar nas comissões da verdade. O Aluísio Palhano estava na Casa da Morte, em Petrópolis. Todas as 50 pessoas que estiveram neste local estão desaparecidas, com exceção da Inês Etienne. Ela teve lá um meio de conseguir sair. Então a Inês Etienne saindo denunciou as pessoas que ela viu ali na Casa da Morte, todas essas pessoas que passaram por lá são desaparecidas. E, com esse trabalho de pesquisa, de estudo científico, se chegou à conclusão que uma das ossadas do cemitério de perus era de Aluísio Palhano”.
Por outro lado, havia também um trabalho de memória, de fortalecer nos Estados, principalmente nos locais onde ocorreram torturas, prisões, de levantar e construir memoriais de resistência, onde as histórias de todos estariam sendo contadas. Diva Santana lembrou que existe o memorial da Anistia, que foi iniciado pela comissão da Anistia, onde “já se investiu um bom dinheiro e que tá quase pronto, mas hoje abandonado lá em Belo Horizonte, que era uma antiga faculdade que doou à União o terreno e a casa que tinham para ser construído o memorial”, e atualmente está interrompido.
Além de outras ações que a comissão vinha desenvolvendo, realizando atividades e audiências públicas nos Estados, ouvindo as pessoas. “Tudo isso foi descontinuado com a mudança da Eugênia Gonzaga para quatro pessoas que não tem nenhum histórico de resgate de memória e de verdade, que não tem nenhum respeito por isso. Porque eu represento os familiares, a Vera Paiva representa a sociedade civil e o Ministério da Defesa, que pela lei pode indicar um representante, agora tem dois representantes. Um deles um coronel. Um coronel representando a sociedade civil é a coisa mais esdrúxula do mundo”, afirma Diva.
À frente da condução política e administrativa do país, Jair Bolsonaro se diz defensor da tortura e dos torturadores. Durante a votação de impeachment de Dilma Rousseff, Bolsonaro, que era deputado, homenageou o coronel do Exército Carlos Alberto Brilhante Ustra, ex-chefe do DOI-CODI do II exército, entre os anos de 1969 e 1974, acusado de tortura dos opositores ao regime de 1964. No processo eleitoral, chamou o torturador de herói. Agora, como presidente, segue chamando Ustra de herói e atacou Felipe Santa Cruz.
Através de declaração pública, o presidente Jair Bolsonaro afirmou conhecer o paradeiro do militante Fernando Santa Cruz, desaparecido por motivação política desde 1974, reconhecido pela Comissão Nacional da Verdade, pela Comissão Estadual Memória e Verdade Dom Helder Câmara e pela Comissão Especial sobre Mortos de Desaparecidos Políticos como pessoa abduzida e morta por agentes do Estado brasileiro.
Um cenário que aprofunda o ambiente conturbado da política brasileira em que foram entregues os relatórios das comissões. No caso específico das universidades, no contexto do início de intervenções do presidente nas nomeações dos reitores eleitos pelas comunidades acadêmicas. Na UFRN, a professora Ângela Paiva Cruz faz o lançamento do relatório final no fim da sua gestão. E o professor Daniel Diniz assume neste cenário de dificuldade para que seja dado o cumprimento às recomendações feitas pela Comissão da Verdade da UFRN.
Para o professor Willington Germano, dentre as ações recomendadas pela comissão, “o ato mais significativo ocorreu em 2015, por ocasião do lançamento do livro da Comissão da Verdade, em evento público de grande envergadura e visibilidade, no Auditório da Reitoria da UFRN, o principal da Universidade, que ficou lotado, presidido pela Magnífica Reitora Ângela Maria Paiva Cruz, contando com a presença dos atingidos pela repressão política do regime militar e seus familiares. Na ocasião foram dados a conhecer publicamente as violações e os atingidos por elas”.